Leaving Neverland, Michael Jackson e… Barbra Streisand?!?

Muito se tem dito e escrito sobre Leaving Neverland, o documentário polémico sobre Wade Robson e James Safechuck, duas (das várias) vítimas do pedófilo mais famoso de sempre, Michael Jackson. O documentário do britânico Dan Reed não é tanto sobre Jackson mas sim sobre as feridas profundas e não saráveis dos sobreviventes de abuso sexual na infância. É sobre a culpa, vergonha e empatia com o agressor com que tantas destas vítimas se debatem antes de conseguirem começar a trilhar um tortuoso caminho de recuperação que vai durar o resto das suas vidas.

Tudo aqui é especialmente pérfido dado o perpetrador destes crimes ser o músico mais aclamado e amado dos nossos tempos. O amor que as vítimas por ele sentiam mascara a já difícil percepção de que estão a ser violentadas, fisicamente e psicologicamente. Por isso as vítimas de abuso sexual na infância demoram décadas a falar do abuso. É por isso que as vítimas de Jackson o defenderam várias vezes em tribunal até finalmente se aperceberem que ele os tinha violado em criança. É por isso que muitas ainda o fazem, como é o caso de Brett Barnes.

“Pessoalmente, enquanto homem sobrevivente de abuso sexual e enquanto profissional e técnico de apoio à vítima, este documentário apresenta dois testemunhos e revela como não há nada de simples ou fácil no tema da violência sexual contra crianças. Não é por acaso que acompanhamos homens com mais de 60 anos que nunca antes partilharam a sua história, nem mesmo com as pessoas mais próximas ou familiares. Volto a reforçar que o processo de manipulação, por parte dos abusadores, faz com que as crianças sintam que estão envolvidas numa relação e transfere para elas sentimentos de culpa e de vergonha intensa, de tal modo que acreditam muitas vezes que foram elas as responsáveis pelo abuso que sofreram. E por isso devem ficar caladas e nunca, jamais, devem procurar apoio. Por isso ouvimos homens que nos dizem “Será que fui eu, com 6 anos, que quis o abuso? Será que que me expus de um modo sexual? Será que fui eu que de algo modo poderei ter suscitado o interesse sexual dele? Será que fui eu que o seduzi?” Estes são apenas alguns exemplos de como a manipulação afeta realmente a perceção das crianças, e como esta manipulação resulta num longo e doloroso silenciamento”

Ângelo Fernandes, fundador da Quebrar o Silêncio e sobrevivente de abuso sexual
“Michael Jackson: e se acreditássemos nos testemunhos?” (Sapo 24)

Com Jackson surge o debate, agora cada vez mais presente na era pós-#METOO,  da separação da arte do artista. No entanto, muitas rádios já deixaram de passar a sua música e muitos analistas já revelaram que a perceção pública do artista mudou para sempre. Contudo, claro, a defesa de Jackson continua por parte da sua família e detentores da sua riqueza que insistem que ambas estas vítimas o tinham já ilibado em tribunal e só procuravam ficar ricos com a partilha das suas histórias. Defesa esta que é espelhada por muitos fãs do artista que se recusam a deixar cair por terra a imagem que tinham dele e insistem que Michael Jackson era, por não ter tido uma infância normal e quiçá também ele vítima de abuso, uma criança ele mesmo e portanto sem maldade nas relações que formava com estes rapazes.

No entanto surge agora a mais surreal defesa de todas a Jackson. Parte da cantora Barbra Streisand, amiga do cantor. Apesar de afirmar que acredita em Robson e Safechuck, avança em declarações ao The Times:

As suas necessidades sexuais eram as suas necessidades sexuais, provenientes da infância que teve ou do seu DNA. Podem falar em ‘molestamento’ mas aquelas crianças estavam extasiadas de estar com ele. E ambas se casaram e tiveram crianças, por isso aquilo não as matou

Pois. Streisand parece acreditar que o abuso sexual de crianças é genético e está codificada no nosso DNA, logo que não existe forma de lhe escapar. Diga-se de passagem que a compreensão da cantora sobre genética deverá ser limitada à utilizada pela mesma para produzir dois clones do seu falecido cão. Mas o pior é o que vem a seguir, menosprezar a experiência das vítimas como algo menor e que não as afetou assim tanto. Mais, que elas estavam contentes daquilo lhes ter acontecido. Isto é de uma perfídia imensurável e só pode partir da mente privilegiada de alguém que nunca teve qualquer contacto com vítimas reais destes crimes hediondos e que apenas se baseia na luz (cada vez menos) ofuscante da sua própria celebridade. E teve ainda a lata de rematar em relação ao movimento #METOO com “infelizmente, vai fazer com que muitas mulheres não sejam contratadas porque os homens têm medo que elas sejam atacadas“. Em defesa dos pobres homens? Menos Barbra, menos.

Não podemos deixar de reconhecer todos os contributos que Streisand fez pela comunidade LGBT e pelo próprio feminismo. Mas foda-se Barbra, cala-te e ouve as vítimas. Percebe o percurso delas. Entende a dor e a culpa que as minam. Celebra a coragem que tiveram. Barbra, can you hear them?

Fonte: Variety

ATUALIZAÇÃO: Barbra Streisand respondeu à polémica através do seu Instagram oficial. Meh.


Por Nuno Miguel Gonçalves

I lived once. And then I lived again.

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