A Nova Normalidade do Primavera Sound de Barcelona

Como seria se os festivais de música fossem realmente igualitários? Se em lugar das mesmas bandas de rock do costume, carregadas de testosterona e privilégio ancestral, houvesse um equilíbrio total na representação de artistas no que toca ao género? É isso mesmo que o Primavera Sound de Barcelona fez este ano com a denominação #TheNewNormal. E isso aconteceu mesmo no passado fim de semana, em que os palcos eram irmamente divididos entre homens e mulher, como se o género não fosse uma questão no que toca ao talento. Porque não é.

Mas o festival, que começou já em 2001, quis ir mais além e teve o cuidado de derrubar novas barreiras de género e orientação sexual fazendo representar nos seus 16 (!!!) palcos inúmeros e inúmeras artistas queer e LGBT. Incluindo até concertos antes do festival propriamente dito em várias salas por Barcelona: a nossa Linn Da Quebrada e a sua comparsa Jup do Bairro fizeram implodir a Sala Apolo com a sua mistura de ativismo, sexualidade e funk. Mas o Parc Del Forum, onde decorre o festival desde 2005, é uma espécie de utopia a céu aberto, a fantasia em que todos e todas gostaríamos de viver. E não podia ter sido uma experiência mais mágica.

O festival em si bate aos pontos qualquer festival em Portugal, só lhe fazendo concorrência o seu irmão mais novo no Porto – que este ano, estranhamente, não quis adotar a mesma iniciativa #TheNewNormal. Apesar do Primavera Sound de Barcelona ter a mesma lotação máxima do NOS Alive tem o quádruplo do tamanho e número de palcos, garantindo que nunca existe desconforto e atropelos causados por multidões e que o público consegue sempre ver as bandas que ali o fez mover. Se bem que com tanta (e tão boa) oferta foram inúmeros os concertos perdidos por sobreposição de horários. Que me desculpem a Lizzo e a CupcakKe, entre tantas outras, mas não foram escolhas fáceis.

Não deixa de ser interessante que num meio onde as maiores enchentes são para bandas no masculino, a maior afluência de público no mesmo palco tenha sido com Miley Cyrus, que foi substituir Cardi B no festival e aproveitou para apresentar o seu novo e belo EP She is Coming. Não desiludiu com a sua postura “I don’t give a fuck” e conseguiu conquistar com canções que tinham sido lançadas, literalmente, nem 24 horas antes. Outra estrela a encabeçar o cartaz foi Solange, que trouxe o seu terceiro álbum de originais para a sua terceira actuação no Primavera Sound. Solange soube ultimamente criar o seu próprio caminho, totalmente afastado do sucesso gargantuano da irmã Beyoncé, apresentando a sua própria interpretação do que é soul, funk e música negra. Para celebrar a cultura negra, sem vergonha nem impedimentos. E foi o que fez. Com uma banda incrível num corpo de bailarinos que acompanhavam as canções com coreografias minimalistas enquanto subiam e desciam degraus de uma escada branca, fez ilustrar a sua arte, que não podia ser mais profundamente pessoal. Fosse na celebração da excelência negra quer fosse na dolorosa confissão da origem do novo When I Get Home, escrito nos últimos anos enquanto compadecia de uma doença e convalescia num hospital, sendo estas as canções que escreveu nessa altura e que, segundo a própria, a salvaram. Um momento vulnerável de exposição de uma artista tão reservada em relação à sua vida pessoal. Em nome do entendimento e universalidade da sua arte. Dos concertos mais tocantes do Primavera Sound.

Cyrus e Solange são indubitavelmente divas LGBT e não foram poucos os momentos que o Primavera Sound parecia de facto mais uma mega-celebração de Pride do que um normal festival de Verão. Fosse no puro escape bubblegum de Carly Rae Jepsen que fez emergir os gritos de êxtase de uma multidão de unicórnios ou no génio de produção, escrita e interpretação de canções pop que é Charli XCX. Ou em Robyn, uma deusa maior do meu altar pessoal. A cantora sueca revolucionou por completo a última década da pop com a sua capacidade de transgredir limites anteriormente impostos e criar algo radicalmente diferente e que merece total idolatro. Já a tinha visto ao vivo há mais de 10 anos em Lisboa a abrir a Sticky and Sweet Tour de Madonna, mas entretanto Robyn lançou Body Talk e o mais recente Honey, ambos pedras no charco de águas paradas que muitas vezes caracteriza a música pop. Sem nunca negar as suas raízes na dança e electrónica, Robyn criou um espetáculo verdadeiramente único. Num palco totalmente branco, no cenário e nos próprios músicos que a acompanhavam, ela surge também de branco mas com uns mamilos vermelhos para apresentar o novo disco, que fala, entre muitas outras coisas, de um regresso a ela própria. E à apreciação do seu corpo na totalidade enquanto o deixa ser tomado pela música. Indestructible fez-me soltar lágrimas. Honey fez-me celebrar a minha pele. Between the Lines fez-me pulsar o sangue. Dancing On My Own fez-me acreditar que não existe comunhão mais pura do que a encontrada através da música, quando em uníssono dezenas de milhares de vozes ecoam lamentos universais numa oração conjunta.

O orgulho sentia-se em todo o lado. Enquanto esperava por Rosalía, apercebi-me de um jovem catalão que não tinha mais de treze anos, desinibidamente queer, totalmente vestido de cor de rosa e com glitter de várias cores na cara, que aguardava a sua própria deusa pessoal. Com a sua mãe e o seu pai a acompanhá-lo. A brincar com ele. A vibrar com ele. A celebrá-lo. E a artista, também ela catalã, não desiludiu. Pelo contrário. Rosalía foi a grande sensação de 2018 e o seu disco El Mal Querer, o meu favorito do ano passado, destruiu por completo as barreiras tradicionais do flamenco e misturou-o com a eletrónica e o hip hop. Um verdadeiro game changer e que demonstrou que nada é sagrado. Nem imutável. Tanto que chamou a palco outro artista do festival, o brilhante e também transgressor James Blake, para interpretarem em conjunto Barefoot in the Park. E, apesar da vantagem de jogar em casa, não jogou pelo seguro e foi intercalando performances de dança pura e movimentos de hip hop com vocalizações quase sobre-humanas de flamenco, impregnadas de dor e emoção. Mas sempre com espaço para a redenção. Acabou com Malamente mas teria ficado mais duas horas a ouvir a sua voz de anjo caído.

Mas não houve maior orgulho do que ver duas mulheres queer a dominarem por completo o Primavera Sound. Elas foram claro Janelle Monáe e Christine and The Queens. Já tinha a sorte de ter visto a primeira no Vodafone Mexefest num Tivoli completamente ao rubro, pelo que já sabia o que me esperar. Mas muito mudou para Monáe entretanto. Entre participar em vários filmes nomeados ao Óscar, a atriz e cantora saiu do armário enquanto mulher negra queer o ano passado. Coincidiu com Dirty Computer, o seu incrível último álbum de originais que retrata a sua própria revolução sexual e as dificuldades que teve de ultrapassar para chegar a esta verdade derradeira. Se uma artista vai mudando e evoluindo com a sua arte, Janelle Monáe está no topo dessa pirâmide e a sua atuação foi de uma maestria invejável. Toda a encenação, assente na sua banda e corpo de bailarinas femininas e negras, foi no sentido de mostrar abertamente a alegria da sua sexualidade. Com orgulho e sem barreiras de cor ou credo.

Falando em barreiras, elas foram igualmente demolidas com Christine and the Queens. Ou Chris, como a cantora francesa quer que a sua personagem de palco seja agora chamada – também o nome do seu último álbum de originais. Papéis de género? Fuck that shit. A sua atuação foi talvez a mais original de todo o festival, recorrendo a pirotecnia e efeitos de luz e fumo para criar ambientes totalmente distintos para cada canção. Assumindo uma postura masculina, sem nunca negar a sua feminilidade, conquistou o público desde o primeiro segundo, com uma energia aparentemente infindável enquanto dava corpo, juntamente com os seus bailarinos, a coreografias sem género inspiradas nas boys band dos anos 90. Sempre com uma mensagem acutilante e clara: amem-se pelo que são. E deixem-se amar por aquilo que são. E não pelo que a maioria espera que sejam. Se tivesse de eleger um único concerto que simbolizasse todo o festival, seria mesmo este.

Enquanto recupero ainda da exaustão que foi o Primavera Sound, revejo as fotos (galeria acima) e videos (compilação abaixo) e escrevo estas palavras dou-me conta da importância de iniciativas como estas. De trazer normalidade à diferença. Dar-lhe todo o destaque. Celebrá-la mais que nunca. Porque estamos a viver uma altura em que parece ser importante ocultar certos aspectos mais dissonantes da nossa personalidade que nos possa comprometer. Mas é exatamente altura de fazer o oposto e sermos mais nós do que alguma vez fomos. Para que outras pessoas também o possam ser. E que essa normalidade fique mais próxima de todas e todos. Uma hora antes do 1 de junho, Janelle Monáe despediu-se de Barcelona com “Happy Pride“. Quando muitos e muitas se questionam da legitimidade e importância de paradas e demonstrações de orgulho, vamos demonstrar o quão são importantes nesse caminho de nos encontrarmos. A nós mesmos e mesmas, a outros e outras. Em celebração.

Compilação de videos pessoais do Primavera Sound em Barcelona

O NOS Primavera Sound, irmão mais novo do Primavera Sound de Barcelona, começa hoje no Parque da Cidade no Porto.

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