Texto: Uma Manta Ainda É Melhor Debaixo

Houve um dia em que, do nada, me surgiram as palavras que se seguem, não fiz nada por elas e, no entanto, foi assim que elas me saíram da ponta dos dedos naquela manhã de Verão:

O Pedro era uma pessoa que gostava de homens. E de mulheres também. Mas o seu olhar era claramente agarrado pelas virtudes dos homens. O Pedro nunca soube quando esse sentimento lhe nasceu. Não se recorda de alguma vez ter sentido esta curiosidade de forma diferente. Ela simplesmente sempre ali esteve. Muitas vezes no seu quarto às escuras. Longe daqueles que fantasiava. Porque algo ou alguém lhe dizia que aquilo que sentia. Aquela boca. Aquele braço. Era feio. Errado. Um lugar pecaminoso. E no entanto o Pedro não conseguia escapar-lhe. A beleza do que sentia era demasiado óbvia para poder resistir-lhe. E a inevitabilidade acontecia. Todos os dias. Escondida por detrás de uma acção planeada. Um olhar vazio. Um toque desinteressado. Nada a declarar. E ninguém sabia o impacto que esses momentos tinham no Pedro. Uma silhueta de corpos abraçados cegavam a sua mente por instantes. E por instantes o Pedro sentia-se pleno. Oasis no seu mundo de escuridão onde se masturbava às escondidas de si mesmo. Porque a vergonha era constante. E o que sentia era dia após dia destruido pelos que o rodeavam. E ele assim calava-se. Perante todos os outros. E a mão. O suor. O corpo. Esses não o desprezavam. E ele tornou-os nos seus confidentes. E conseguiu de si mesmo arrancar todo o conforto. E por isso as outras pessoas. Os outros homens deixaram de. Lhe. Importar. A frustração de não ver os seus sentimentos apoiados por nada e por ninguém enclausurou-o. E dentro de si limitou-se a observar. Os outros. Os homens. E assim conseguia alimentar os seus desejos. As suas fantasias. O Pedro nunca acreditou que as conseguisse um dia viver. E resignou-se a essa realidade. Criada por ele mesmo. Alimentada por todos os outros. Houve dias em que quis muito mudar. Queria olhar para um homem e não ver nada daquilo que via. Queria ver uma mulher e sentir um pouco daquilo que o aspecto masculino o atraía. Tentou vezes sem conta. Jurou com toda a convicção em si que viria ser um melhor homem após se masturbar sob a emoção de corpos semelhantes ao seu. E continuou a lutar. Contra a sua natureza. E ninguém parecia compreendê-lo. Ninguém parecia ver a sua beleza. Aquela que ele via. E que tantas vezes negou. Como se uma pessoa se pudesse negar a si mesma. Como se isso resultasse. Como se isso mudasse alguma coisa. Não. Claro que não. Mas o que pode um jovem fazer? Que pode ele num mundo que lhe é hostil sonhar? Por vezes Pedro tentou encontrar o momento de viragem. Aquilo que o tornara assim. O momento que o levou a ver as coisas de uma outra forma. Igual no conteúdo de todos. Mas diferente tão só na forma. Talvez assim pudesse entender o porquê. E assim remedear-se. Mas não. Nada encontrou. Desde que tem memória de si que se lembra de sentir o que sente. A criança que foi um dia ainda ali está presente. Sorridente. De olhar aberto. Braços no ar à procura de um mimo. O Pedro ainda adormece para o mesmo lado. O esquerdo. O Pedro ainda come antes de qualquer outra pessoa. A salada. O Pedro ainda confia cegamente nas pessoas. Sempre. E o calor do sol ainda tem o mesmo impacto. E um abraço inesperado ainda o emociona. E uma surpresa ainda o excita. Uma canção o embala. Uma manta ainda é melhor debaixo. Nada mudou verdadeiramente. E ao fim dos anos ele achou que não havia espaço para si. E então morreu.

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