A heróica batalha da Marvel Comics

Marvel Comics Kiss gay LGBT

A visibilidade de modelos homossexuais na cultura popular é um dos mais cruciais veículos de aproximação aos jovens adolescentes. Estes debatem-se com a sua sexualidade e sentem-se vitimizados por colegas numa sociedade que ainda insiste em condená-los por quererem demonstrar quem são. E, numa idade em que a intensidade dos sentimentos de rejeição e descriminação é tão sufocante, a ideia de existirem heróis nos quais se vejam representados e valorizados é mais que importante. É a diferença, muitas vezes, em persistir ou perecer.

E esses heróis tomam muitas formas, mas também podem sê-lo no sentido mais lato da palavra. Super-heróis, aqueles que surgem em histórias de fantasia com poderes que os distinguem dos restantes humanos. E neste campo em particular a Marvel Comics foi desde o início a pioneira nesta batalha. Fundada em 1939, é ainda hoje a mais rentável de todas as editoras de comics, ultrapassando mensalmente a DC Comics e a mais alternativa Image Comics. Estas duas últimas têm vindo a demonstrar há muitos anos a sua tentativa de integração de personagens LGBT nos seus livros, entre as quais a Batwoman de Kathy Kane já há mais de uma década e mais recentemente Selina Kyle, a Catwoman, revelou ser bissexual.

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Mas antes de ser possível retratar tão abertamente heróis homossexuais já a Marvel tinha trilhado um longo e duro caminho de forma súbtil mas sempre acutilante. E fê-lo através de um grupo chamado X-Men. Não, os X-Men não eram personagens LGBT. Mas a premissa da luta de integração de alguém que tinha nascido geneticamente diferente numa sociedade que lhes era adversa era mais que relevante. Enquanto os restantes super-heróis como o Capitão América, Homem-Aranha ou Thor eram celebrados e abraçados pelo público, os mutantes X-Men eram totalmente ostracizados e obrigados a viver em reclusão, sem poderem revelar a sua verdade, mesmo depois de salvarem o mundo inúmeras vezes. Não é de estranhar que muitas crianças e adolescentes gay se espelhassem de forma tão vinculada e sentimental em personagens como Storm, Nightcrawler, Kitty Pryde ou Jean Grey. Esta última é particularmente iconográfica pela sua metamorfose e fusão com a entidade cósmica Fénix que, à semelhança da figura mitológica, renasceu inúmeras vezes das cinzas.

Toda esta luta e idealização do sonho do Professor Charles Xavier em ter mutantes e humanos unidos na sociedade aconteceu na chamada Idade de Ouro da Marvel nos anos 70 nomeadamente com a lendária run de Chris Claremont. Mas com o progresso da luta nas últimas décadas a Marvel continuou a apoiar a causa LGBT de forma bem mais óbvia. Rictor, uma personagem originária dos anos 80 e pertencente às primeiras formações dos Novos Mutantes e da X-Force, depois de largos anos de ambiguidade e secretismo revelou ser homossexual no X-Factor de Peter David 2005, num dos mais brilhantes livros que a Marvel já publicou (e continua a publicar). A abordagem do seu coming out aos seus colegas de equipa foi extremamente tocante, começando pela verdade da forma como alguns começaram por não aceitar a sua orientação e culminando na exploração mensal da complicada relação emocional que travava com Shatterstar, um guerreiro impetuoso e muitas vezes frio e distante. A forma como ambos se desencontravam e uniam nas páginas era não só inspiradora mas também dolorosamente honesta no retrato das relações homossexuais, muitas vezes volatilizadas pela imensidão da pressão social e expectativa futura.

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Outro X-Man que causou mediatismo foi o canadiano Northstar, Jean-Paul Beaubier – o descomplexado primeiro super-herói gay da Marvel – aquando do casamento com seu namorado americano em 2012 no histórico Astonishing X-Men #51. Tudo isto aconteceu no auge da discussão do casamentos entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos da América e ainda antes do apoio por parte do Presidente Barack Obama à luta pela igualdade das pessoas LGBT. Ainda mais politicamente e socialmente pertinente foi a sua possibilidade de deportação da personagem dos Estados Unidos, refletindo uma grave falha judicial e a realidade de muitos casais homossexuais que, apesar da legalidade do seu matrimónio, não tinham o direito de viver com os seus esposos americanos no seu país de origem.

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Estes são só dois exemplos históricos do apoio quase incondicional da Marvel Comics na luta pelos direitos humanos. Podia-se também falar de Wiccan e Hulkling, dos Jovens Vingadores, um casal homossexual adolescente que desafia estereótipos da bissexualidade da célebre Raven Darkholme ou Mystique ou do igualmente famoso Colossus, Piotr Rasputin, que na célebre versão Ultimate é abertamente gay e namorado de Northstar.

Mas o trabalho da Marvel nesta matéria é extenso e cada vez mais precioso. Porque o seu público alvo são exatamente os adolescentes. E ainda mais que auxiliar jovens homossexuais a verem-se reflectidos nos seus heróis está também a consciencializar os seus contemporâneos heterossexuais, muitas vezes incentivados por pressão social para a descriminação, para a normalidade de existirem exemplos de força e heroísmo cuja homossexualidade é apenas mais uma característica e não uma definição. No meio das notícias das batalhas diárias que as pessoas LGBT têm de dolorosamente travar para simplesmente subsistirem, é encorajador pensar que milhares e milhares de crianças, independentemente da sua orientação sexual, crescem e tornam-se adultos com estes exemplos no virar de uma página.

8 comentários

  1. Faltou-te o Bobby Drake, que se revelou recentemente homossexual 😉 Acho que, a este nível, é a novidade mais fresca.
    Uma das coisas boas na forma como a Marvel lida com isto habitualmente é o facto de não fazer números específicos para estas personagens ou relações. Não há melhor forma de destruir o preconceito do que abordar estas relações normalmente, num livro que não se foca nelas mas, como todos os outros, nas histórias dos super-heróis e do mundo com eles. Cansa que a mania de aumentar a representatividade leve muitas vezes a criar séries só para isso (acontece frequentemente com as mulheres) ou com alterações de personagens já existentes nas suas versões alternativas. Bom é que ocorram naturalmente, pelo meio de todas as histórias, como na vida real. Quando a história é centrada, por um motivo lógico, numa relação, então óptimo que a Marvel “arrisque” centrar em relações que não as heterossexuais. Algo particularmente bem feito, a meu ver, com a série dos Young Avengers escrita pelo Kieron Gillen. A relação entre o Wiccan e o Hulkling está misturada com a história ao longo de toda a série. Recomendo.
    Mas sim, acho que a Marvel tem feito um bom papel nesta questão, algo ainda mais importante dado o enorme alcance actual das BDs, séries e filmes da Marvel.

    1. Se calhar é tão fresca a novidade do Bobby Drake que até aconteceu depois de publicares este texto, já lá vai tanto tempo, só agora reparei, não me parecia ter sido à tanto!

      1. Foi um regresso ao passado do texto do Nuno, dado que é um tema ainda muito central, especialmente, e como bem disseste, dado o impacto que a Marvel tem não só nos jovens, mas no público ‘mainstream’ com as suas séries e filmes.

        De resto, 100% de acordo =)

      2. Hehe, sim, o Drake foi já após o texto. Até escrevi algo curto sobre isso na altura mas já não me lembro se foi para o blog ou o Facebook. Adorei a forma descontraída e “não-espalhafatosa” como tal foi revelado, naquela interacção com a Jean Grey. Em relação ao Young Avengers na altura não conhecia o casal ainda mas entretanto já os descobri também. A Children’s Crusade é ótima mas não me entusiasmei muito com as coisas mais recentes.

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