O Problema De João Miguel Tavares

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As declarações do Presidente do Instituto Do Sangue E Da Transplantação, Hélder Trindade, na semana passada na Assembleia da República causaram polémica porque, segundo ele, homossexuais só podem dar sangue se estiverem em abstinência sexual. Os comentários e opiniões não tardaram em surgir mas houve uma em particular que teve especial paixão. João Miguel Tavares falou assim no Governo Sombra:

Depois de todo o discurso em que os argumentos passavam por pilinhas e pipis, por probabilidades de 50% o que me chocou, mas não surpreendeu, foi a forma fanática como defendeu a sua opinião e tentou silenciar os restantes colegas. Não é pois de estranhar que hoje João Miguel Tavares tenha escrito a sua crónica no Público sobre este mesmíssimo tema. Ora vejamos:

Nós vivemos num país onde a homossexualidade só deixou de ser crime em 1982, e onde os homossexuais ainda são vítimas de inadmissíveis preconceitos. Mas se lutar contra esses preconceitos é uma obrigação, convém que o combate à discriminação não seja cego, sobretudo quando o assunto em causa é a transmissão do VIH.

Hmmm… OK, prossigamos…

Atacar o presidente do Instituto Português do Sangue por este ter afirmado no Parlamento que está definido como factor de exclusão para a dádiva de sangue “ser um homem que tem sexo com homens” não é lutar contra o preconceito — é um reflexo pavloviano que inverte direitos (o direito fundamental em causa não é dar sangue mas sim receber o sangue mais seguro possível).

O João, que até tinha começado de forma aceitável, começa no segundo parágrafo a mostrar o sentido que pretende dar ao seu texto e fá-lo com uma técnica inteligente mas conhecida dos mais atentos: pega numa verdade universal e, de forma indirecta, força a sua ligação a uma condicionante do problema em questão. Não está aqui em causa nenhum direito fundamental de dar sangue mas sim o direito básico de quem desejar doar sangue não seja discriminado pela sua orientação sexual. Receber o sangue mais seguro possível é o desejo de todos os cidadãos e é por isso que existem os questionários que devem ser rigorosos e de carácter científico.

É também por isso que todo o sangue doado é testado, dado que o questionário é obviamente falível. O grau de segurança destes testes é altíssimo, a rondar os 99,9999996% no mundo ocidental (ou, se preferirem, 1 em 3.000.000). Em Portugal as colheitas de sangue rondam as 200.000 unidades anuais mas o número tem vindo a baixar o que levou, curiosamente, o Instituto Português Do Sangue a apelar aos dadores que reforcem a sua dádiva. Entre 2004 e 2007, por exemplo, não houve um único caso de infecção do VIH por transfusão em Portugal.

Continuando pela crónica do João:

(…) ou há razões médicas legítimas para considerar os homossexuais masculinos um grupo de risco no que à transmissão do VIH diz respeito, ou a proibição de alguém ser discriminado devido às suas práticas sexuais é obviamente inadmissível. A questão que deve ser colocada, portanto, é esta: há ou não razões médicas atendíveis para que essa discriminação se mantenha?

Custa-me a acreditar que em pleno século XXI, e passadas décadas de estudos que nos permitiram conhecer o vírus e a doença, passadas décadas de educação sobre o tema ainda se fale em grupos de risco. Se calhar o João faltou a umas aulas no secundário ou não reparou em trabalhos de grupo quase obrigatórios sobre o VIH/SIDA na década de 1990 que não há grupos de risco, esse é um termo que há muito entrou em desuso no mundo ocidental quando se começou a perceber as características do vírus e da sua transmissão. Há, sim, comportamentos de risco (como o sexo desprotegido ou a partilha de seringas usadas).

Imagine, João, que um casal de dois homens saudável e monogâmico (casados como tu até) pretendem doar sangue. Qual a razão para lhes ser negado isso? Imagine, João, que um homem gay pratica sexo seguro. Imagine, João, que uma mulher pratica sexo anal. Imagina que uma mulher pratica sexo sem proteção com o seu marido e que este a trai. Imagine, por fim, que a primeira causa de infecção do VIH na Europa é pela relação heterossexual. É por todos estes factores, João, que é essencial que os questionários sejam efectivamente rigorosos e conjugados com os testes ao sangue.

Havendo uma janela imunológica em que é possível o VIH estar presente sem ser detectado pelas análises, há ou não mais probabilidades de um gay estar infectado do que um heterossexual?

O João não fez o seu trabalho de casa, então não sabe que, precisamente por causa dessa janela imunológica, para além dos testes regulares são também feitos os testes de ácido nucleico ou os da proteína cápside P24 que minoram ainda mais esse efeito de janela? Comentar na rádio, televisão e jornal devia motivá-lo a pesquisar um pouco mais sobre o que pretende falar e não levantar questões que existem apenas para dar força ao seu argumento.

É claro que se os meios de diagnóstico melhorarem até à eliminação dos falsos negativos, se a qualidade dos inquéritos atingir a perfeição ou se as estatísticas demonstrarem uma diminuição dos contágios MSM que torne as actuais medidas desproporcionadas, a proibição que impede os gays de doar sangue deve ser eliminada.

Fica igualmente claro que para o João os diagnósticos nunca serão suficientemente bons apesar de todos os dados apresentados. Apesar de todos os avanços feitos na pesquisa do VIH/SIDA, apesar de todo o esforço na educação das pessoas, o João acha que este tipo de argumentação não tem um peso negativo na desinformação que lança sobre os jovens, inconscientemente dizendo-lhes, no extremo das palavras, que se forem gays ou bissexuais ele e outros assumirão que estão infectados não pelos seus actos mas pelo que são.

Digo mais, João lança também no subconsciente dos heterossexuais menos informados ou inconscientes que o VIH/SIDA é, acima de tudo, uma coisa de homens gay e isso é absolutamente perigoso. Para todos.

Nota: Vale a pena ler os artigo do blogue Jugular, “O Sangue E A Banalidade Do Mal” do Paulo Côrte-Real (ILGA) e “Devemos Proibir Os Lisboetas De Doar Sangue?” do Pedro Morgado.


14 comentários

  1. Numa sociedade ideal, com pessoas de bem, o que deveria ser dito era o seguinte: “Pessoas em monogamia podem, pessoas abstinentes por um certo período de tempo, podem” sem menção à orientação sexual. O problema deste tipo de decisões também esta relacionado com vários factos epidemiológicos. 1º houve um aumento, nos últimos anos, do numero de homossexuais infectados com o HIV (e o mesmo para a sífilis e gonorreia), 2º A maior taxa de sexo inseguro está nos homossexuais, 3º Os homossexuais tem uma taxa superior à média de problemas de ansiedade/depressão e, 4º a depressão/ansiedade esta proporcionalmente relacionada com uma elevada propensão para comportamentos de risco (seja qual for a orientaçao sexual)

    Conclusão: A vida é feita de ciclos. O sangue de uma percentagem considerável de homossexuais é perigoso (em termos de saúde publica). Contudo, se vivêssemos numa sociedade onde os homossexuais são vistos como iguais e nao aberraçoes, teriamos menos gays encharcados em antidepressivos, no armário, sozinhos e abandonados, teríamos menos casos de SIDA e outras doenças e, não estaríamos sequer a debater se os homossexuais são podem ou não dar sangue. O problema é que há muita homofobia na comunidade médica. Conheço inclusive senhores doutores médicos que puseram filhos gay na rua. Agora admirem-se porque é que esses gays menosprezados tem comportamentos de risco

    1. César, alguns reparos que faço em relação ao seu comentário que desde já agradeço.

      Como mencionado no texto, houve um aumento dos casos de infectados com o VIH/SIDA em pessoas heterossexuais. Várias questões se podem colocar por esses dados (quer para hetero como para homo). Por exemplo, até que ponto, no mundo ocidental, a noção de que o VIH/SIDA já não é uma ‘pena de morte’ mas, com os novos tratamentos, uma doença crónica não ajudou as pessoas a perderem esse receio e a ‘arriscarem’ comportamentos de risco. E, repito-me, quer entre hetero como homossexuais.

      Fala das depressões em pessoas LGBT causadas pela homofobia, preconceito e discriminação da sociedade. Então pergunto, não são comentários como os do João Miguel Tavares e afins e a decisão do presidente do Instituto do Sangue que provocam precisamente essa situação de discriminação e fobia? Tal como escrevi acima no texto, não é também irresponsável espalhar a noção, mais ou menos explícita, que os homens homossexuais são mais perigosos só pelo que são (e não apenas aqueles, homo ou hetero, que têm comportamentos de risco)?

      Acho igualmente perigoso generalizar a ideia das depressões (na realidade acho que as generalizações são quase sempre perigosas), porque, lá está, não podemos meter todas as pessoas no mesmo saco. Se é verdade que há uma maior propensão à depressão nas pessoas LGBT (e em particular nas trans), é também verdade que nem todas sofrem dessa condição e, ainda para mais, nem todas as que sofrem de depressão entram em comportamentos de risco. Logo não faz qualquer sentido eliminar ‘a priori’ estas pessoas só porque são LGBT. Reforço a ideia: a noção de grupos de risco é, desde há 20 anos, ultrapassada, o que importa aqui são os comportamentos de risco (e nunca a orientação sexual das pessoas).

      Menciona a sociedade ideal que, concordo, está longe de ser esta, mas a sociedade, acredito, é aquilo que queremos que ela seja e aquilo que fazemos por isso.

      Obrigado mais uma vez pelas suas palavras, cumprimentos.

  2. Caros
    Na sequência das declarações enviei este email, ara um email que penso se ro do JMT, mas nunca tive resposta.
    “Caro João Miguel

    Depois do governo sombra desta semana, ocorre-me a estreia de enviar um comentário a um comentador.
    Antes de mais, uma declaração de conflito de interesses ou da sua ausência, sou heterossexual, não concordo com a discriminação dos homossexuais, não concordo com nenhum benefício inerente á opção sexual, tal como prescindiria de um benefício associado á minha heterossexualidade.

    Faço-o por razões diversas:

    a) Sendo o João Miguel um “educador” ainda que subtil de “algum povo”, claro que não na perspectiva Arnaldo de Matos do processo, acho – modestamente, que devo contribuir para enriquecer detalhadamente, a sua cultura médica.
    b) Pertencendo o João Miguel aquela parte de humanidade, substancial, que tem sexo acho que deverei contribuir com alguma informação de boas práticas de Saúde Pública
    c) Pertencendo o João Miguel á parte da humanidade que tem sexo heterossexual, ocorre-me mostrar-lhe um snapshot da natureza

    Por definição não existem opções sexuais de risco, pelo menos no que toca a doenças sexualmente transmissíveis – DST – existem relações sexuais de risco. Estas são por definição, qualquer relação sexual – RS – não protegida. Independente do tempo do conhecimento – conhecido há uma hora ou um casamento de 50 anos (se ainda houver, casamentos de 50 anos e RSs depois de 50 anos de casamento! pode ser que sim, há pessoal que compra poucos livros e não precisa de tempo de para por a leitura em dia.
    Esta deixa-nos a pensar! Já todos tivemos muitas ou poucas – há níveis diferentes de sorte – RS de risco.
    De fora disto fica o sexo oral, que em termos de práticas preventivas move-se numa zona mais nebulosa, sendo o risco muito perto de zero. Bill Clinton! Estavas certo.

    Aqui enviei no meu email a imagem da tabela do relatorio da INSA com os novos casos de 2013:

    Heterosexuais – 665
    MSM – 330
    Toxicodependente – 76
    Tranfundidos – 1numa transfusão efcetuada fora de portugal.

    De facto o “receptor” tem sempre um risco mais elevado que o “emissor”. Quanto ao local da recepção, de facto o risco é mais elevado no reto do que no colo vaginal, ainda que subtilmente.
    Falando de Estatística, e dentro desta, de probabilidades, a prevalência da infecção VIH em Portugal é de 0,45%, das maiores da Europa, mas numa análise puramente de probabilidades, é quase o mesmo que acertar nos prémios intermédios da raspadinha, mas que acontece, acontece. A incidência tem aumentado, no grupo etário > 50 heterossexual – idade do divórcio e do novo relacionamento e da geração pré-preservativo – e no grupo etário 18 – 25, aqui muito relacionado com hábitos “inebriantes”, quanto á distribuição entre sexos, não é preciso nenhuma politica de quotas.
    Permita-me ainda dentro das probabilidades, uma correcção ao seu raciocínio, havendo duas hipóteses vs uma hipótese o risco aumenta, ao contrário do que concluiu. Porque os fluidos vaginais contêm sempre grandes/enormes quantidades de VIH – falando de um doente não tratado. Enquanto que o reto, a não ser que ocorra hemorragia não terá tão grande quantidade.
    Quanto á taxa de infecção entre HSH – homens que têm sexo com homens (para poder incluir os bissexuais), a taxa entre heterossexuais e a taxa entre transfundidos, mostro-lhe os números do ultimo relatório publicado:

    Quanto á janela para detecção analítica, desconheço o método de análise em Portugal, a boa prática manda efectuar a análise do sangue recolhido sobre o RNA do VIH e as proteínas viricas p24 e gp120, obviando o período de primo-infecção correspondente á ausência de anti-corpos anti VIH

    Resta-nos a definição de contra-natura. A esta tenho resposta, olhe-se a natureza. Olhe-se na natureza os nossos parentes mais próximos.

    Pois é como dizia o RAP, na mesma refeição pode-se comer cozido e bacalhau, ao que eu acrescentaria ainda uma sopa. Nisto o Expresso apresentou uns números “engraçados” sobre a prevalência de sexo anal entre casais heterosexuais.

    1. Obrigado pelo comentário! Ao contrário do JMT, respondemos sempre hehe

      Apenas um reparo: em vez de “opção sexual” diz-se “orientação sexual” (onde se pressupõe que não há efectivamente uma escolha, nem para ser hetero ou homossexual ou outros).

      Cumprimentos e volte sempre!

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