Queer Lisboa 19: Abertura do certame com “Praia do Futuro”

Começou ontem a 19ª edição do mais antigo festival de cinema da cidade de Lisboa, dedicado ao denominado cinema queer. Mas é cada vez mais o intuito do Queer Lisboa diversificar o seu cartaz e difundir a temática por um público mais abrangente e heterogéneo. Por isso a audiência que marcou ontem presença no Cinema São Jorge, no coração da cidade em plena Avenida da Liberdade com o apoio sempre ativo da Câmara Municipal, é também ela mais diversa, livre, verdadeira.

[Clicar nas imagens para ver no tamanho original]

O próprio cinema queer e devido rótulo tem-se vindo a imiscuir lentamente nos lançamentos mainstream, e o filme escolhido para a abertura “Praia do Futuro” de Karim Aïnouz é um excelente exemplo disso. Estreado na Competição Oficial da Berlinale do ano passado é também representativo do que ainda falta alcançar. Na altura da sua estreia no Brasil, a segunda maior cadeia de cinema do país, Cinépolis, advertia individualmente cada espectador sobre o conteúdo do filme e a existência de cenas de sexo homossexual. Acabavam com um carimbo nos bilhetes para garantir uma potencial proteção legal. No entanto, Aïnouz descartou estas manifestações de intolerância e centrou-se na recepção maioritariamente positiva que “Praia do Futuro” tinha desfrutado junto de quem se permitia a descobri-lo.

O filme que Aïnouz tão meticulosamente criou, recheado de silêncios narrativos que são preenchidos pela vontade do espectador, é também sobre isso mesmo. Donato é um salva-vidas de Fortaleza que na perigosa Praia do Futuro é incapaz de salvar um dos dois motards alemães que se banhavam nas suas águas traiçoeiras. A culpa toma-o e no processo acaba por se relacionar sexualmente e afectuosamente com Konrad, enquanto este faz o luto pela morte do amigo. O olhar da realização de Karim Aïnouz, reconhecido por “Madame Satã” de 2002 sobre um performer revolucionário do Rio de Janeiro dos anos 30, apresenta-se robusto e virtuoso desde o início e denota imediatamente uma forma alternativa de contar uma história, pouco tradicional e rica em estímulos visuais. Sejam eles a luz absolutamente cegante e onírica de Fortaleza ou a falta dela na crua e fria realidade de Berlim, não sendo um mais permissivo ou natural que o outros. Ambos são tratadas com a mesma importância pelas lentes de Ali Olay Gözkaya, responsável pela fotografia absolutamente desarmante dos últimos filmes de Aïnouz.

Exibição de
Exibição de “Praia do Futuro” com Wagner Moura (conhecido de Tropa de Elite) e Clemens Schick na Sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge

São poucas as palavras que premeiam esta sua obra, caracterizada acima de tudo por composições de plano absolutamente arrebatadoras e que garantem que cada imagem e cenário contam uma história e transmitem a direcção emocional das personagens. Nelas sentimos a vergonha de Donato, incapaz de viver a sua identidade na plenitude no sítio que o viu nascer e crescer e encontrando no espírito livre e desobrigado de Konrad um local onde pode finalmente encontrar-se. Sentimos também o desmoronar da aparente frieza dos olhos de Konrad que anseia viver para além do perigo iminente e encontros constantes com a Morte e busca um lar e conforto em Donato. Nestas interpretações tão intransmissíveis reflectimos um pouco de nós mesmos e o desenrolar da narrativa e destino das personagens são também eles, inevitavelmente, nossos.

É difícil olhar para o número 19 do Queer Lisboa e não pensar o que avançamos a nível de direitos LGBT nas últimas décadas. A despreocupação com que grande parte do público que se dirige ao São Jorge, ou subsequente festa de abertura no Fontória, é certamente bem diferente daquela que se via há dezanove anos atrás naqueles mesmos degraus. E se é verdade que hoje vivemos mais livremente também é igualmente verdade que, se algumas batalhas foram ganhas, a guerra ainda está longe de vencida. Basta olharmos semanalmente para as páginas dos jornais e ver a violência, seja ela psicológica ou física, a que são submetidas as pessoas da comunidade, até num país tão brando e apático como Portugal. Por isso continua ser vital a sedimentação da posição incontornável do Queer Lisboa enquanto estandarte de igualdade e inclusão. E naquele ecrã da sala Manoel de Oliveira continuar a sentir que não estamos sozinhos nas trincheiras.

Nota: Poderão igualmente ver a galeria completa de fotografias no álbum do Facebook.

O Cinema São Jorge acolhe novamente o Queer Lisboa em plena Avenida da Liberdade
O Cinema São Jorge acolhe novamente o Queer Lisboa em plena Avenida da Liberdade