Queer Lisboa 19: Resumo Do Fim-De-Semana

Sábado marcou o segundo dia da 19ª edição do festival de cinema Queer Lisboa. Numa tarde de calor de um verão que se despede da cidade, assistiu-se ao documentário “Misfits do realizador dinamarquês Jannik Splidsboel. Focado na vida de vários jovens que, ao viverem em Tulsa, uma cidade do estado norte-americano do Oklahoma com duas mil igrejas e um único centro LGBT, sofrem a pressão de uma sociedade local extremamente religiosa. São pessoas que foram abandonadas, pessoas que são diariamente condenadas no local onde vivem e encontraram no centro “Open Arms” uma família e um apoio para encontrarem o seu rumo. O documentário vive sobretudo do carisma das suas três figuras centrais: Larissa, uma rapariga que fugiu de casa para viver com a sua namorada e que oferece um dos momentos mais genuínos de intimidade do filme, um beijo roubado à sua namorada sob as luzes fantasiosas de um parque; Benny, um rapaz que, com humor à mistura, detesta o seu emprego temporário e que sonha arranjar o seu príncipe encantado enquanto lida com uma família que aprendeu a amá-lo, mais uma vez; e D, um jovem que se declara pansexual e que, sem certificado de nascença, luta por conseguir avançar na vida e arranjar trabalho para poder viver com a sua noiva, mas todo o plano começa por arranjar uma simples bicicleta. São estas as personagens que carregam o documentário até ao fim, num processo de aproximação e humanização de todas elas. No final, acreditamos ter efectivamente ali estado, a seu lado.

Limbo queer lisboa 19 LGBT cinema

O final da tarde trouxe igualmente da Dinamarca “Limbo“, de Anna Sofie Hartmann. Passado na pequena cidade de Nakskov onde impera uma fábrica de açúcar e onde Sara, uma aluna, se apaixona por Karen, uma professora. É um filme que, embora tenha a ambição de projectar o ambiente cinzento do inverno dinamarquês, a rejeição amorosa da professora sobre a confissão da aluna e, no meio disso, discutir a temática LGBT e de género, peca ser vazio no seu final, não havendo qualquer desenvolvimento ou dedicação às emoções que uma situação daquelas poderia despertar. Mas, pior que tudo, trata-se de um filme absolutamente inconsequente.

Domingo trouxe três filmes bem diferentes à Sala Manoel de Oliveira, mas todos eles se focaram na questão “Família” de uma forma ou outra.

Pauline S_Arrache - Oh La La Pauline 2 queer lisboa LGBT

Pauline S’Arrache” foi talvez o mais óbvio dos três nessa assunção, um género de documentário transfigurado e ficcionado pela realizadora Emilie Brisavoine, presente na sessão. Na realidade tratam-se de filmagens feitas pela própria a retratar a vida da sua meia-irmã Pauline no ambiente sufocante e perverso criado pelos pais, adeptos do drama exagerado por via dos desacatos. Não fosse Fred, o pai de Pauline, um travesti com orientação sexual pouco definida e adepto do glamour plástico das princesas dos contos de fadas. Com uma naturalidade jocosa, o filme é marcado por uma série de separadores que vão contando as desventuras da princesa Pauline e dos seus irmãos rebeldes, a princesa Anaïs e o príncipe Guillaume, que fogem do castelo e a deixam sozinha com a rainha deprimida mas dominadora e o rei louco de saltos altos. O tom histriónico com que é olhada toda a disfunção familiar que rodeia Pauline começa por ser transtornante e quase repugnante, mas ao longo do filme essa sensação vai-se metamorfoseando e dando lugar a algo terrivelmente familiar e até humorístico na forma como é tão impiedosamente abordado. Apesar de pouco composta, talvez pela competição da sessão de Curtas que acontecia na sala 3 e pelo Queer Pop, a audiência decerto não deixará de recordar esta obra de Brisavoine, ainda que as opiniões poderão se extremar. Contudo (quase) todos agradecerão, secretamente, a normalidade enfadonha das suas próprias famílias.

Oriented queer lisboa cinema lgbt doc documentário

Antes de “Pauline…” o Queer tinha dado destaque a outro documentário, este mais assumido e tradicional mas que preparava o desvendar para uma realidade pouco conhecida. Tratava-se de “Oriented” do realizador britânico Jake Witzenfeld, que acompanhava o quotidiano de três jovens gays palestinianos em Tel Aviv. E se a presunção ocidental de que existem no Médio Oriente diferenças crassas de costumes e valores que nos separam, cedo essa mentira se desmorona quando nos são reveladas as vidas de Khader, Fadi e Naeem. Os problemas que dilaceram qualquer homem gay que tenta viver na plenitude da sua identidade são espelhados nas suas experiências, sejam elas o aterrador coming out às famílias ou as repercussões positivas e negativas deste, ou a procura de um amor idealizado que simplesmente não existe. Contudo, apesar da identificação que sentimos com os seus quotidianos (as roupas, os amigos, as noites), também é chocante ver como tudo é ladeado e exacerbado um conflito ainda maior: a eterna guerra religiosa entre Israel e Palestina. Esta continua implacavelmente a ceifar vidas diariamente e cabe-nos a nós decidir continuar a fechar os olhos a uma realidade que pensamos tão distante da nossa quando ela é dolorosamente similar.

Lilting queer lisboa cinema festival lgbt

A dor é exactamente o tema central de “Lilting” a primeira longa-metragem do realizador Hong Khaou, de origem cambodjana mas criação britânica e que, tal como Emilie Brisavoine, se apresentou no Queer para mostrar o seu filme (e confessar que tem uma casa na Costa da Caparica sem internet para se dedicar plenamente à escrita dos seus guiões, fugindo da megalómana cidade de Londres). Ela, a Dor, é o ponto unificador das duas personagens principais, Richard e Junn, ele tendo acabado de perder o amor da sua vida e ela o seu único filho. No entanto ele, Kai, nunca conseguiu juntar as pessoas que mais amava e nunca tinha conseguido assumir a sua relação com Richard perante a sua mãe. Desnorteado pela morte de Kai, Richard tenta aproximar-se de Junn apesar do conservadorismo da mesma que a levou, entre tantas outras coisas, a nunca assimilar a cultura britânica e não falar sequer inglês depois de décadas a viver no país. A dança de olhares e silêncios entre Junn e Richard é tão mesmerizante quanto assombrosa e tem muito a agradecer aos dois actores de “Lilting”: Cheng Pei-Pei, uma notória actriz chinesa com uma cara e expressão fechadas mas absolutamente transparentes na intenção, e Ben Whishaw, um dos actores mais fenomenais da sua geração, capaz de conjurar num pequeno gesto a dor atroz de alguém que sente que perdeu tudo aquilo que o mantinha coeso e são. As linhas que impõem o choque cultural são também aqui lentamente apagadas pela forma não óbvia ou fácil com que Richard e Junn se vão aproximando. No final compreendem-se a falar uma lingua que o outro desconhece por completo e são arrebatados pelo que os une. Porque é perfeitamente absurdo e contranatura continuarmos a pensar que o Homem enquanto ser social possa tomar faces tão radicalmente diferentes e diametralmente opostas somente por diferenças na religião, pele, género ou orientação sexual.

A semana continua com mais sessões e o Escrever Gay estará presente em várias delas, aguardem mais novidades e até lá poderão conferir os nossos destaques, tal como toda a programação do festival aqui.