Texto: A Mão E A Camisa De Flanela

Motivado por uma noite fora da rotina em pleno fim-de-semana, entrei por aquela porta com duas garrafas de vinho na mão. Era um jantar que juntava vários amigos e amigas da Lara, conhecia eu apenas uns poucos deles. Com a casa apinhada, deixei a garrafa na mesa de madeira da cozinha e segui para a sala onde estava toda aquela gente. Inspirei fundo e entrei.

Os olhares reconheceram alguns daqueles rapazes e raparigas e, levado por esse alívio inconsciente de familiaridade, aproximei-me primeiro deles para os cumprimentar. Depois, e porque a educação assim mo ensinou, dirigi-me às restantes pessoas que conhecia primeira vez naquele momento.

Frente da televisão, ao sentirem-me aproximar, um grupo de quatro ou cinco levantou-se para facilitar o processo.

Bem, acho que começo por esta ponta“, disse eu rindo-me.

E por entre beijos e beijinhos, nomes para aqui, nomes para lá e alguns risos, comecei a cumprimentar aquelas raparigas. Até que, por fim, chego à camisa de flanela e é a mão que estico. Um passou-bem trocado naquele local tal como o tinha feito a outros rapazes antes. Mas a mão era pequena, suave, o aperto delicado. E então olhei a pessoa com tempo, sem a automação das anteriores, e vi que a camisa de flanela era larga o suficiente para esconder um peito de mulher, que o cabelo curto emoldurava uns olhos claros e doces, também eles de mulher. Não me restaram dúvidas naquele instante, apesar de toda a circunstancia, as luzes indirectas, o nervosismo, aquela era uma mulher e eu, ao contrário de todas as outras na sala, tinha-a cumprimentado com a mão. Em pânico sai da sala e fui para a cozinha.

Já fiz merda, Lara!

Então, que se passou, querido?

Não fazes ideia, estava a cumprimentar aquelas tuas amigas que estão sentadas no sofá e chego à última  e dou-lhe um passou-bem, como se fosse um rapaz!

A Lara riu-se enquanto preparava uma salada.

Qual delas?

A que tem uma camisa de flanela, nem me lembro do nome dela, fiquei todo atrapalhado e fugi para aqui…

Ah, a Isabel? Não te preocupes que ela não leva a mal essas coisas!

Pois, ela não disse nada, mas percebi o olhar de surpresa dela, depois de cumprimentar todas as outras com dois beijinhos… bem, vou falar com ela, tem de ser!

Sim, fala com ela se quiseres, mas não te preocupes, estamos habituadas a essas situações…

Peguei na salada já pronta e fiz dela o meu amuleto que me levava de novo à sala. A Lara tinha razão, provavelmente a rapariga já teria passado por esta situação no passado, mas quantas delas remetidas a um silêncio constrangedor? Não era essa a opção que achei correcto, por isso larguei a salada em cima da mesa e fui ter com ela. Ao ver-me levantou-se mais uma vez do sofá enquanto as outras suas amigas cessaram as suas conversas e nos espreitavam pelo canto do olho.

Olha, queria pedir-te desculpa pelo que aconteceu há bocado…

Não tem problema, não fizeste por mal…“, respondeu-me sorrindo.

Bem sei, mas não me iria sentir bem se não viesse falar contigo. E, mais importante ainda, não me iria sentir bem se não soubesses que não o fiz por mal.

Não te preocupes, eu percebi logo na altura, mas obrigado por teres vindo falar comigo a seguir, a maioria das pessoas que o faz não se dá ao trabalho.

Terminámos a nossa pequena conversa da única forma possível, com dois beijinhos e o que tinha acontecido antes deixou de o ser depois. O jantar continuou noite fora, como qualquer jantar que junta um grupo de amigos continua. Mas para mim foi a noite onde aprendi que pior que cometer um erro é cometê-lo e não lidar com ele. Não o reconhecer, não pedir desculpa por ele. Porque se o fizermos tudo muda e, por vezes, um pequeno gesto pode ter um forte impacto nos outros, especialmente se estiverem eles conformados com o problema. E assim, talvez, menos conformados fiquem e passem a exigir nada mais que dois beijos. E que venham eles!

Por Pedro Carreira

Ativista pelos Direitos Humanos na ILGA Portugal e na esQrever. Opinião expressa a título individual. Instagram/Twitter/TikTok/Mastodon/Bluesky: @pedrojdoc

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