Maria De Belém Em Falta (posições e a ausências de uma candidata)

Existem momentos em que nos deparamos com alguns factos que nos fazem questionar as acções (ou inacções) de outras pessoas. Porque a repetição de alguns comportamentos nos levantam dúvidas quanto às reais intenções por detrás de certos actos. E se por aqui já levantámos questões quanto à genuinidade do candidato a Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, é hoje a vez de nos questionarmos sobre a candidata Maria de Belém.

Comecemos pelo acesso ao casamento entre pessoas do mesmo sexo em Portugal, direito que se concretizou a 8 de Janeiro de 2010. Maria de Belém, que votou nesse dia favoravelmente,  assinou no entanto a seguinte declaração de voto:

O PS apresentou-se ao eleitorado, nas últimas eleições legislativas, transportando no seu Programa o compromisso de «remover as barreiras jurídicas à realização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo».

 

Sendo certo que tal asserção poderia comportar vários sentidos, desde cedo considerámos que o referido compromisso eleitoral do PS poderia ser (mais) adequadamente realizado através da criação de um novo instituto jurídico — que poderíamos inclusive designar por «casamento homossexual» — sem que este implicasse a redefinição do conceito histórico-jurídico de casamento actualmente plasmado no artigo 1577.º do Código Civil e que, assim, se manteria inalterado…

 

Ao invés, como veio recentemente referido no Acórdão do nosso Tribunal Constitucional n.º 359/2009, de 9 de Julho, ao optar-se pela redefinição do actual conceito de casamento, suprimindo a referência à diferença de sexo entre os cônjuges, o legislador afastará definitivamente a consideração deste «como instituição social através da qual o Estado recorre ao potencial do direito para difundir determinados valores na sociedade, no caso os valores segundo os quais o casamento, por um lado, constitui um meio específico de envolver uma geração na criação da que se lhe segue e o único desses meios que assegura a uma criança o direito de conhecer e ser educada pelos seus pais biológicos.»

 

Como o mesmo Tribunal Constitucional recorda, «Em face da definição do casamento em vigor é ainda possível encarar este último como uma união completa entre um homem e uma mulher orientada para a educação conjunta dos filhos que possam ter; a definição do casamento pretendida pelas recorrentes (que abranja duas pessoas do mesmo sexo) encara-a como uma relação privada entre duas pessoas adultas que visa essencialmente satisfazer as necessidades próprias.»

 

[…]

 

Tal como o casamento, com a sua limitação a pessoas de sexo diferente, não discrimina os casais homossexuais em razão da sua orientação sexual, também as uniões homossexuais não discriminam os  casais heterossexuais em razão da sua orientação. Mulheres e homens podem casar com uma pessoa de sexo diferente, mas não com uma pessoa do mesmo sexo; qualquer um pode entrar numa união civil com uma pessoa do mesmo sexo, mas não com uma pessoa de sexo diferente». A diferença que permite distinguir deste modo as pessoas homossexuais e as heterossexuais, quanto aos vínculos jurídicos que queiram dar às comunhões de vida entre si, é a seguinte: «A diferença, consistente em de uma relação de um homem e uma mulher unidos por muito tempo poderem resultar filhos em comum, o que não pode acontecer numa união de pessoas do mesmo sexo, justifica que os pares de pessoas de sexo diferente sejam remetidos para o casamento quando queiram dar à sua comunhão de vida um vínculo jurídico duradouro».

 

[…]

 

Deste modo estaríamos a «remover as barreiras jurídicas à realização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo» sem que fosse inapelavelmente posta em causa a definição de casamento tal como é histórica e socialmente entendido entre nós.

 

Sucede que a interpretação autêntica do compromisso eleitoral do PS, recentemente sedimentada no seio do Grupo Parlamentar do PS que veio a resultar do acto eleitoral de Setembro de 2009, aponta no sentido de se entender aquele compromisso como significando a supressão da referência «de sexo diferente» constante do actual artigo 1577.º do Código Civil, assim redefinindo o conceito jurídico de casamento.

 

Deste modo, porque reconhecemos que o compromisso assumido pelo PS — logo também assumido por todos os que, como é o nosso caso, em seu nome se candidataram — pode considerar-se concretizado na proposta em causa (ainda que outra, como atrás vem dito, fosse, para nós, a via considerada mais adequada), votámos favoravelmente esta proposta de lei, deste modo contribuindo para o cumprimento de um compromisso eleitoral em nome do qual fomos eleitos.

 

Diário da Assembleia da República, páginas 61 e 62 [pdf] (nota: destaques nossos)

 

Fica claro que Maria de Belém preferiria a distinção entre “casamento” e “casamento homossexual” (ou, suponho, “casamento” e “casamento de segunda”, ou até “casamento a sério” e “casamento gay”), não entendendo o problema discriminatório que aí se levantaria. Aliás, já em 2011 se escrevia sobre a candidata: [Maria de Belém] “será menos entusiasta quando o Parlamento debate os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, em 2008 e 2010, e nunca se mostrou favorável às adopções por gays“.

É precisamente este último o tema seguinte, a adopção e co-adopção por casais do mesmo sexo, e aquele que, talvez de forma menos óbvia que no caso do casamento, levanta questões sobre o que realmente pensa a candidata sobre o mesmo.

Recordamos o que disse em 2005:

Este tema está a ser debatido por todo o lado e em Portugal também é preciso falar dele. Mas o interesse da adopção recai sempre nas crianças e quando as sociedades não estão preparadas, são elas que acabam por sofrer. E nós ainda não estamos preparados.

Mais que as palavras, Maria de Belém desperdiçou o seu direito de voto como deputada do Partido Socialista nas inúmeras vezes que propostas de alteração de lei foram votadas na Assembleia da República (e chumbadas). Ora vejamos então os dados da legislatura anterior e aquilo que nos fez escrever sobre coincidência, desperdício e, como resultado, em levantar questões sobre o real apoio que a candidata deu às pessoas LGBT e respectivas famílias:

 

Todas estas abstenções e faltas (justificadas ou não) – parecem-nos demasiado recorrentes e coladas a estes temas em particular. Parece-nos portanto válido levantar todas estas questões.

E houve quem lhas fizesse: já este ano, à Lusa, Maria de Belém – quando questionada se promulgaria os dois diplomas sobre a adopção de crianças por casais do mesmo sexo e a procriação medicamente assistida (PMA) – respondeu que os diplomas da adopção e da PMA chegarão a Belém acompanhados de pareceres de órgãos consultivos. “Analisados esses pareceres, o mais normal será que o Presidente da República os promulgue. A ser necessário consulta a algum organismo, a sê-lo, será ao Conselho Ético para as Ciências da Vida. Isso em relação ao primeiro. No caso do segundo diploma pode ser promulgado“. A nós parece que não respondeu à questão, mas tentou antes adivinhar o que o ainda Presidente da República – Cavaco Silva – deverá fazer. Tratou-se de mais uma oportunidade desperdiçada por Maria de Belém para explicitar aquilo que defende e acredita e não escamotear a sua resposta.

A candidata que se apresentou na campanha “para unir os Portugueses“, é na realidade para unir apenas alguns, ou dito de outra forma, para “desunir” Portugal. Maria de Belém está em falta com os direitos das pessoas LGBT; está em falta com o direito das crianças adoptadas e respectivas famílias; está em falta com o exemplo que poderia ter dado como deputada. Esta Maria está em falta com a vulnerabilidade das pessoas LGBT na sociedade e não restam dúvidas que “a força do carácter” está na forma como alguém trata aqueles que mais precisam de protecção. E nisso, Maria de Belém, há muito que está, definitivamente, em falta.

Vale portanto ponderar a questão quando no próximo Domingo, dia 24, formos votar nas Presidenciais de 2016: é esta uma candidata que efectivamente nos representa? A resposta ainda poderá vir atempadamente da própria candidata, é esperarmos que se justifique e, eventualmente, nos tire de vez as dúvidas. Porque até lá aí estão elas, bem presentes no voto de cada um.

Nota: este artigo não teria sido possível sem a ajuda do David Crisóstomo e do Filipe Fernandes.

Fonte: Público (fotografia)