Identidade vs. Rotulagem

O cantor Ricky Martin terá afirmado à revista mexicana Fama que não veria problemas em sair e ter sexo com mulheres, não se considerando por isso bissexual ou menos gay. Não vê o facto de poder querer ter sexo com uma mulher, e efetivamente tê-lo, como uma negação da sua homossexualidade. No mesmo artigo, terá afirmado que não gosta de rótulos e que encara o sexo com liberdade e, por isso, não limita o seu desejo ou as suas necessidades. Em momento algum põe em causa a sua homossexualidade.

Esta aparente contradição é apenas aparente. A questão da identidade é fundamental para desenvolvermos a auto-estima, para olharmos ao espelho e conseguirmos reconhecer-nos na nossa sexualidade, naquilo que nos move no mundo e nas pessoas. É igualmente fundamental para podermos dar voz ao que somos e integrarmo-nos em algo maior que nós própri@s. É o basilar do orgulho, a primeira parte da afirmação no mundo, um elo com um sentido de comunidade. Ricky Martin diz: “sou gay, os homens fascinam-me” e isso é mais forte que o seu próprio desejo ou qualquer outro domínio do meramente sexual. E, lá está, não é contraditório com aquilo que pode eventualmente sentir por uma mulher. Um gay pode ter sexo com mulheres e não ser por isso bissexual, uma lésbica pode ter sexo com homens e não ser por isso menos lésbica. A questão da identidade sexual, da orientação sexual, não tem a ver com estatística da cama nem com gostar ou não gostar. Tem sobretudo a ver com a forma como nos vemos, como queremos ser percepcionad@s, como queremos guiar a nossa presença no mundo. E aplica-se a todas as orientações.

Na comunidade LGBT, mas falo sobretudo de gays e lésbicas, passamos grande parte da nossa vida jovem (e nalguns casos, também da adulta), à procura da afirmação de uma identidade, para dentro e para fora, e, por vezes, podemos assustar-nos quando, por algum capricho do nosso desejo, nos deparamos com uma pessoa de sexo diferente que nos atrai. Mas uma coisa é o que fazemos, o que desejamos, outra coisa é o que somos e, principalmente, como nos identificamos. No desejo não há coerência, não há rigidez. Por outro lado, a questão da orientação sexual pode assumir um pilar identitário. A percepção que um/a tem de si mesm@ não se esgota obviamente nesta vertente, mas a orientação sexual não normativa (porque foi durante bastante tempo questionada pel@ própri@) assume uma importância fundamental na pessoa. Um/a heterossexual não precisa de afirmar-se enquanto tal, nem se vê reconhecid@ nela de uma forma identitária porque nunca a questionou. Está tão entranhada (e por isso é tão identitária) que nem sequer a coloca em perspetiva.

Mas, a par da orientação sexual, vem também a possibilidade de encontrarmos no mundo pessoas que nos fascinam e/ou atraem. Num mundo ideal, a possibilidade de um/a heterossexual poder sentir-se atraíd@ por alguém do mesmo sexo contribuiria para questionar uma determinada matriz, sem comprometer efetivamente a sua identidade. Acredito que a tendência é nesse sentido, a da diluição das barreiras da sexualidade. Daí Ricky Martin dizer que não gosta de rótulos, mesmo sendo impossível nessa liberdade deixar de ser quem é. E isso é algo que muita gente ainda não entende.

No mais importante coming out por que passei, perguntaram-me “mas se nunca tiveste sexo com mulheres ou com homens, como sabes que és lésbica?” e, nessa pergunta, reside grande parte da visão comum sobre a sexualidade não- normativa – como se para se saber que se é fosse preciso experimentar. Nunca ninguém diz isso a um jovem de 14 anos com uma grande libido por mulheres – “mas tens a certeza? Olha que ainda não experimentaste, não sabes se gostas”. Há coisas que sabemos, ou que vamos sabendo. E isso não quer dizer que não se derrubem as fronteiras do desejo, mas ser lésbica (ou gay), assumir-se enquanto tal é uma posição no mundo – representa coisas e ajuda numa luta mais abrangente pelos nossos direitos.

Na bissexualidade, o caso é o mesmo. Sim, ok, podemos tod@s tender (sabe-se lá por qual estudo) para uma bissexualidade, mas estamos apenas a falar de desejo ou de factos e não de identidade. Uma coisa é sentirmos desejo por pessoas de ambos os sexos, outra coisa totalmente diferente é sentirmo-nos bissexuais. Porquê? Porque um/a bissexual vê-se a si própri@ enquanto tal, reconhece-se assim, constrói (ou reconstrói) a sua identidade dessa forma. Ao contrário de Ricky Martin, que é um gay que não exclui a hipótese de ter sexo com uma mulher.

A construção da identidade depende, em primeiro lugar, de cada um/a, enquanto um rótulo é algo que qualquer um/a pode colar sem dificuldades. O que não quer dizer que fique colado.