A noite tinha sido agreste, acordei com os estores das janelas a latejar com a imponência do vento que os atormentava. Na varanda as cadeiras encolhiam-se a um canto, arrastadas pelo gelado sopro. Sim, as temperaturas tinham caído abruptamente e a Dona Luciana chamava por mim.
Cobri-me com um amontoado de roupas grossas que me limitavam os movimentos, apertei os botões do casaco mais quente até ao último, calcei as botas que tratavam as poças por tu e saí de casa num início de tarde assombrado.
Ao chegar ao Jardim do Príncipe Real vejo-o fechado para obras de manutenção, grades bloqueavam aqueles que queriam passear os seus cães naquela tarde molhada. Apanhei o bilhete guardado às três em ponto naquela porta amarela do Teatro da Politécnica e fui queimar mais uns passos por aquela zona. O Sol decidiu aparecer e iluminou Lisboa daquele jeito que até Paris, no seu íntimo, inveja. Do Miradouro de São Pedro de Alcântara vi os turistas a espreitarem as colinas, o castelo e o rio, os seus olhos brilharem.
Depois a Dona Luciana chamou-me mais uma vez, estava na hora de ir ter com ela. Olhei uma última vez para trás e despedi-me daquele espaço de despidas árvores. Apressei o passo ao chamamento e até São Pedro – não sei se o mesmo do miradouro – me motivou a abrir caminho por aquela subida com gotas grossas na cara. Quando cheguei novamente à porta amarela fingi o melhor que pude não correr, era uma dança, uma correria de criança a quem responde pelo nome e não pela chuva que caía.
Como eu várias outras pessoas se abrigavam para lá da porta amarela, comprando os últimos bilhetes, conversando com as suas companhias ou, como eu, descobrindo o espaço.
Às quatro em ponto abriram-se as portas – outras duas, não amarelas mas pretas se bem me lembro – e fomos avisados que desligássemos os telemóveis várias vezes por diversos membros do teatro, sempre com um sorriso e uma disponibilidade imediatos. Sentei-me na penúltima fila, junto às escadas para poder deixar as camadas de roupa e a mala com o computador onde agora escrevo sossegados a meu lado. E depois as luzes apagaram-se.
Apagaram-se as luzes e silenciou-se o público, na expectativa do que aí vinha. Ouviam-se passos e adivinhavam-se silhuetas. Cadências de um pisar de palco. Som e ritmo envolvidos pela penumbra. Entrámos assim num ensaio tardio de uma peça de teatro em que quatro – quatro não, três! – três personagens tentavam arranjar rumo para a história que queriam contar: o encenador, a actriz Madame La Rite e o técnico. E então deu-se uma explosão energética que contrastou em absoluto com o vazio inicial e, assim, fomos rapidamente levados para um mundo de humor, de busca e confronto. Afinal de contas, o que é aquilo que vemos diante de nós? Não importa saber se é a peça se é a realidade, o que importa saber é quem matou a Dona Luciana. Sim, essa que me chamou vezes sem conta.
A Dona Luciana é a senhora que faz as limpezas deste teatro. Ouvimo-la fora de cena a gritar por cima de um ruidoso aspirador se não estava a incomodar os ensaios. Mas dúvidas surgem se aquela era realmente a sua voz, porque – dizem-nos – as vozes das senhoras das limpezas são todas iguais e há uma louca a rodear o teatro. Essa louca desfigurada, sabêmo-lo depois, é Vicky Mancha Negra, uma antiga stripper transsexual que os irá ajudar a descortinar o mistério do assassinato de Dona Luciana. E depois há o rato. O rato, perguntam? Sim, o fantoche de mão que é noivo de Deus – protagonizado pelo encenador obviamente.
É nesta trama surrealista que as personagens desenvolvem perante nós a sua essência e, no meio de risos e situações pitorescas, se despem – alguns literalmente – perante nós. E é nas dúvidas que levantam que somos levados pela complexidade das mesmas. São pormenores, são falas sussurradas que nos aproximam delas. E no fim o desenlace.
Quem é afinal a Dona Luciana? Qual o seu fim? Mais, qual o fim que ela deseja dar à peça? Fazem-nos questionar sobre o fim, o nosso, talvez. E fazem-no repetindo a morte as vezes que forem necessárias até encontrarmos todas as respostas. As nossas, essas certamente.
E com elas os aplausos.
A NOITE DA DONA LUCIANA de Copi
Tradução Isabel Alves Encenação Ricardo Neves-Neves Assistência de encenação Catarina Rôlo Salgueiro Elenco Custódia Gallego, José Leite, Patrícia Andrade, Rafael Gomes, Rita Cruz e Vítor Oliveira Figurinos José António Tenente Luz Elduplo Música Sérgio Delgado Fotografias Alípio Padilha Designer Pedro Frois Meneses Vídeo Promocional Eduardo Breda Comunicação Mafalda Simões M16
Teatro da Politécnica | 24 de Fevereiro a 19 de Março de 2016
3ª e 4ª às 19h00 | 5ª e 6ª às 21h00 | sábados às 16h00 e 21h00
Duração | 1h15 minutos
Reservas | 961960281 | 213916750 (dias úteis das 10h – 18h) | artistasunidos@artistasunidos.pt
Morada | Rua da Escola Politécnica, 54
Notas: Obrigado ao Teatro do Eléctrico pelo convite 🙂 Fotografia final publicada com autorização do mesmo.
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