Cátia Domingues E A Desconstrução Do Comentário Asqueroso No #JogoDoTanso

Cátia Domingues (aka One Woman Show) assina uma das rubricas de humor mais corrosivas da televisão nacional: o Jogo Do Tanso, do Canal Q. Nela a Cátia apresenta-nos um tópico polémico actual e, contrariando a premissa “NUNCA LER OS COMENTÁRIOS”, escolhe a dedo os melhores comentários que encontra a essas notícias nas redes sociais. E por melhores quero dizer, obviamente, piores. Mas é uma tarefa que alguém tem que fazer e a Cátia, para bem de todos nós, coloca-se na linha da frente da desconstrução dos comentários xenófobos e sexistas que portugueses teimam em deixar no Facebook e afins.

Antes de apresentar a entrevista, vale a pena ver dois exemplos d’O Jogo Do Tanso: o primeiro trata-se do já clássico “rir para não chorar”, onde nos é questionado se não se trata de “terrorismo de primeiro grau” a adopção por casais do mesmo sexo:

Já no segundo exemplo, é dado foco sobre a notícia da semana passada que anunciou a criação de campos de refugiados dedicados a pessoas LGBT. Neste episódio a Cátia assim apontou o dedo e, no final, a #facepalm ao melhor dos comentários:

 

São exemplos destes que tornam esta numa das melhores rubricas de humor actualmente em Portugal, com o cuidado de não esquecer esse poço sem fundo que é a homofobia e o sexismo. E há mais, muitos mais, descubram-nos na playlist do Youtube e durante a semana às 22h30 e às 1h no Canal Q

 

Depois desta introdução,  e se é verdade que o trabalho fala por si, é igualmente verdade que a palavra é aqui rainha. Por isso assim procurei saber um pouco mais da Cátia e daquilo que a impulsiona na defesa das pessoas LGBT, numa entrevista:

 

Depois de tantos comentários de ódio e preconceito lidos, o que te mantém a esperança na Humanidade? Qual o teu segredo?

 

Essa é a pergunta mais difícil de responder, porque eu sinto-me fisicamente mal muitas vezes a fazer as recolhas das opiniões. Não me consigo afastar daquilo. Mas olha, eu quero acreditar que a fé que ainda tenho devo-a às pessoas com a cabeça no sítio que tenho à minha volta e ir conhecendo histórias de pessoas incríveis que me fazem acreditar que isto está a mudar para melhor. Ah, e fazer terapia duas vezes por mês também ajuda.

 

Já algum dos seleccionados no #JogoDoTanso te contactou de volta? Algum episódio giro?

 

2 ou 3. Foi muito divertido porque me ameaçaram processar. A não ser o PNR que fez só um post com um screenshot da rubrica na sua página. Mas como faço questão de recolher os comentários mais hediondos e como são públicos, em páginas públicas, e até faço questão de esconder a foto e os nomes, não existe enquadramento legal sequer. Mas respondo sempre que seria um gosto ser levada a tribunal por uma pessoa que afirma que “o que faz cá falta é um Hitler para exterminar essa paneleirada toda“.

 

A temática LGBT é recorrente na tua rubrica, o Estado tem vindo nos últimos anos a colmatar falhas na Lei Portuguesa em relação à discriminação das pessoas LGBT, mas a sociedade parece acompanhar a evolução com maior resistência. Como vês justificada essa renitência por aqueles que continuam a opor-se activamente contra os direitos de outrem?

 

A primeira causa que me juntei foi à dos direitos LGBT, ainda sem saber bem o que queriam dizer as siglas todas. Sempre tive pessoas próximas que passaram pelo estigma e pela discriminação à minha frente e isso, mais do que outra coisa qualquer, sempre mexeu comigo. Há um episódio que me marcou e até hoje consigo sentir o que senti. Andava na escolinha e um grupo de idiotas tratou mal um amigo meu. Eu nem sequer conseguia saber porquê, porque ele nem sequer estava a fazer nada de mal. Chamaram-lhe nomes e ofereceram-lhe pancada só por ele ser quem é, normal. A revolta foi tão grande que cheguei a casa a chorar com mil perguntas para a minha mãe que só me respondeu “As pessoas são assim, não ligues“. E liguei e ligo. E para mim o conceito de direitos humanos nasceu ali.

 

Agora a justificação que encontro, e que me parece mais lógica, é a do medo. Ainda há pessoas com muito medo do que foge à norma. Pensam que a realidade delas, que na verdade se formos a ver não é tão boa assim, vai mudar e isto assusta-as. A falta de conhecimento do mundo atinge muita gente. Em relação aos direitos LGBT, eu vejo por alguma da minha família, que sempre viveu em meios pequenos e fechados, e posso-te dizer que há muitos que acham que um homossexual é o Castelo Branco, porque é isso que conhecem, é o que se mostra na televisão e aquilo assusta-as. Agora já não, porque eu desde que me conheço que sempre abordei esta fobia com eles, e conheceram entretanto várias pessoas LGBT e hoje estão perfeitamente à vontade com isso. A única coisa que lhes custa agora se calhar é a forma como outras pessoas os poderão discriminar.

 

Qual o estado da comédia em Portugal (o CdM não conta!) e em particular para as mulheres comediantes?

 

Tu nunca tiveste tantos comediantes como agora, no país. A comédia está na moda. E claro tens bons e maus, e ainda bem. É bom dares às pessoas oportunidade para conhecerem e se tornarem consequentemente mais exigentes com o que consomem. Agora, se há espaço, se há uma indústria com estrutura para esta diversidade toda, não. Daí veres quase sempre os mesmos a aparecer e este refinamento de gosto é mais lento. E os que por algumas razões não estão na televisão, estão mais em bares e teatros e em última instância nas redes sociais. Mas há uma necessidade no público de consumir esta arte. Prova disso são as milhares de referências que consumimos também lá de fora. O acto ou arte, como lhe queiras chamar, de fazer comédia pode ter inúmeros propósitos, e quem decide é quem a faz. Eu optei naturalmente por um humor mais activista, de intervenção, mas há dias em que me apetece falar da Quinta da TVI ou fazer uma piada com a morte ou uma tragédia qualquer. Eu é que me imponho os limites (essa discussão tão na moda) e mais ninguém. Há dias que me apetece fazer uma piada com o Cavaco e há dias com a Bernardina. Umas correm melhor, outras pior e é a vida. Em Portugal sinto é que não podes “falhar”, se o fizeres és o inimigo público nº1 durante 15 dias. E quando digo falhar é dizeres alguma coisa que as ofenda por qualquer razão. Ora, se todos nós, humoristas ou não, é irrelevante, tivermos a considerar o que pode ofender milhões de pessoas, nunca falamos e isso é que não pode ser. Não podes agradar a todos, mas o problema é que com as redes sociais, a facilidade com que te tornas um alvo é terrível. É aprender a relativizar. Eu vou aprendendo. As pessoas ainda se levam demasiado a sério e acham que uma piada com o Passos Coelho é giro mas se for com elas ou pessoas que elas gostem, já não. É mau gosto.

 

Como mulher posso-te dizer que já ouvi isto: “vais ter mais facilidade em crescer porque és mulher e isso está na moda” e “as mulheres não têm tanta graça como os homens“. E as duas perspectivas são sempre injustas. Este mundo é estatisticamente masculinizado mas já tens mulheres incríveis lá fora, e algumas aqui dentro, que provam o contrário. Mas ainda há um trabalho, um desafio, a fazer. E eu aceitei-o sem pedir a autorização a ninguém.

 

Jogo do Tanso Canal Q LGBT
Não deixem de ver a rubrica durante a semana às 22h30 e à 1h no Canal Q.

Nota: Obrigado à Cátia pela entrevista 🙂