Ser uma pessoa Trans é porreiro

No último mês, por diversas razões no contexto português, foram publicados vários artigos em jornais de nome nacional sobre algumas das dificuldades que são colocadas a uma série de pessoas para conseguirem ter reconhecimento legal e justo. O número de pessoas apresentado pode apresentar ser muito pequeno, porém… indicam os dados e diz-me a experiência que este valor é consideravelmente baixo em comparação com a realidade. Este valor reflecte apenas as pessoas que chegaram, efectivamente, ao registo civil… para trás são deixadas imensas pessoas.
Não irei entrar aqui em detalhes sobre isto, mas apenas uma referência pessoal, tendo em conta que participei em algumas destas entrevistas.
Assumir-me publicamente (em que dimensão for – esfera pessoal, profissional, …) como pessoa Trans tem um impacto enorme no meu dia a dia. Poder-se-ia pensar porque então o faço, é uma pergunta justa ao qual, na minha experiência respondo – o silêncio é uma forma de violência enorme. Porém, passar do silêncio à palavra implica sair de uma área de conforto conhecida.

Alguns pontos que são recorrentes:

  • A minha identidade enquanto pessoa é perdida
  • Passo a ouvir falar de mim e prostituição na mesma frase
  • Passo a ouvir falar de mim e pedofilia na mesma frase
  • Passo a ouvir falar de mim e doente na mesma frase
  • Passo a ouvir falar de mim e aberração na mesma frase
  • Passo a ouvir falar de mim e coisa na mesma frase

Curiosamente, tenho muitas vantagens e possibilidades:

  •  Passo a ter lições de existência dia após dia (quem não se esquece de quem é)
  •  Passo a ter lições de paciência dia após dia (quem é que não gosta de estar à espera uma hora)
  •  Passo a ter lições de comportamento (quem é que não sabe que aquele andar é piroso)
  •  Passo a ter lições de culinária (que rapariga é que não cozinha)
  •  Passo a ter lições de moda (que rapaz é que gosta de moda)
  •  Passo a ter lições de estética (que pessoa atabalhoada e com mau gosto que eu era)
  •  Passo a saber que gostar de carros é uma surpresa
  •  Passo a saber que gostar de ciência é… hum
  •  Passo a saber que gostar de maquilhar faz mesmo o meu género

Para além disto, descobri muitas coisas a meu respeito que não sabia:

  • Afinal, passados 29 anos todas as pessoas sabiam que eu era uma rapariga
  •  Afinal, já se suspeitava que eu era diferente (devo aqui acrescentar estranha?)
  •  Afinal, o facto de gostar de costurar significava alguma coisa
  •  Afinal, ter estudado matemática, estar em física e trabalhar nas TI foi e é só para disfarçar
  •  Afinal, até descobri que afinal, até não sei de quem gosto

No fim, e só porque acho que isto não deve ficar esquecido:

  • Ir a qualquer lugar tornou-se uma actividade muito mais segura (afinal, posso-me camuflar)
  • As pessoas recebem-me sempre com um sorriso muito grande (afinal, sou uma mulher alternativa)
  • Falar sobre sexo é extremamente fácil (afinal, quem não gosta de falar de sexo)
  • Não tenho problemas em mostrar-me à frente do mundo (afinal, todos gostamos de ver algo diferente)
  • Posso falar do que quiser (afinal, tudo o que eu digo faz sentido)
  • As minhas dificuldades deixaram a ter significado (afinal, já disse o que tinha a dizer, que quero mais)
  • A minha voz fez-se ouvir mais alto (afinal, agora tenho voz fina certo)

São factos concretos da minha existência (teria mais alguns para acrescentar, mas não quero fazer uma lista exaustiva). Então, digam lá?

Ser uma pessoa Trans não é mesmo porreiro?

Dani Bento

 

Nota: Fotografia por Jblaha.

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