Novo Projecto de Lei Pretende Despatologizar a Diversidade de Género

O Bloco de Esquerda vai entregar na próxima semana no Parlamento um projecto de lei para que a transexualidade em Portugal não seja considerada doença mental, reconhecendo assim o direito à autodeterminação de género. Os Bloquistas defendem que não deve ser colocada nas mãos de terceiros a decisão sobre a identidade das pessoas transexuais e de género diverso.

O Bloco defende a “ definitiva despatologização da diversidade de género, sendo para isso essencial que nenhuma pessoa poderá ser obrigada a submeter-se a qualquer tratamento farmacológico, procedimento médico ou exame psicológico que limite a sua autodeterminação de género”.

Actualmente quem pretenda alterar o seu género fica obrigado a submeter-se às consultas de um médico e de um psicólogo, de entre uma lista previamente fixada o que pressupõe que esta é uma patologia uma vez que só o pode fazer quem tiver um “diagnóstico de perturbação de identidade de género”.

Na versão preliminar da Classificação Internacional de Doenças (CID II) – que será publicada em 2017 – as “categorias de diagnóstico relativas às pessoas transexuais e de género deixam de figurar enquanto diagnóstico de saúde mental passando a ser consideradas condições de saúde sexual”.

O projecto de lei do Bloco defende ainda que a partir dos 16 anos deve ser reconhecida a qualquer pessoa o direito à audeterminação de género. Nos casos em que os pais ou tutores discordem desta pretensão, o Bloco defende que os/as menores possam “intentar acção judicial“, deixando assim que “seja o tribunal a decidir de acordo com os princípios de autonomia progressiva e do superior interesse da criança“.

Quanto à possibilidade de um adolescente sem meios financeiros poder recorrer à Justiça, a deputada Sandra Cunha responde que “este pode ter um professor, amigos, um familiar ou uma associação de activistas que o ajudem nessa pretensão. [A eliminação do relatório médico] irá permitir o acesso de mais gente à alteração de género porque há não só pessoas com dificuldades em aceder à lista de clínicos habilitados, como também há quem se recuse, por uma questão de princípio, a submeter-se a um parecer que lhe irá imputar um dano mental”.

Este projeto estende-se também a cidadãos estrangeiros residentes em Portugal e a portugueses/as que tenham mudado de género e de nome noutros países.

Se esta lei for aprovada haverá ainda implicações no documento de identificação onde deixará de constar qualquer menção ao género.

Este projeto lei pretende ainda que o Serviço Nacional de Saúde continue a garantir “o acesso a intervenções cirúrgicas e/ou a tratamentos farmacológicos destinados a fazer corresponder o corpo com a identidade de género com o qual a pessoa se identifica”.

Aguardemos então a discussão e os desenvolvimentos a esta notícia nos próximos dias.

Fontes: Esquerda.net e Vox (imagem).

8 comentários

  1. Agora é que acaba definitivamente a resposta do SNS para os transexuais! Valha-me ter o processo terminado e ADSE…

  2. Embora evidentemente considere que este seja um grande passo para aproximar a legislação nacional aos melhores exemplos que já existem lá fora (na Europa, Irlanda e Malta; fora da Europa, a Argentina) — já basta de «andarmos a reboque» para estarmos na crista da onda, como estivémos em 2011 com a mudança da lei — a verdade é que gostaria que este tema fosse substancialmente mais debatido, e passo a explicar porquê.

    Uma coisa é apostar na despatologização da transexualidade. Isso parece-me a mim mais que óbvio: a afirmação de uma identidade não deve ser uma «doença», tal como a orientação sexual também não é uma «doença». Até aí evidentemente estamos de acordo.

    A outra coisa tem a ver com os processos administrativos. Tal como não precisamos de um médico que nos confirme legalmente a nossa homosexualidade/bisexualidade/pansexualidade — basta a auto-afirmação da mesma para, por exemplo, imediatamente beneficiarmos da protecção legal contra a discriminação homofóbica — o mesmo se devia passar relativamente à questão da identidade de género. Mais uma vez não poderia concordar mais com isto.

    Mas existe um aspecto que ainda não consegui ler na proposta actual (só li a proposta preliminar, que não contemplava esta questão): a prevenção da fraude. Como as mulheres, na nossa sociedade, são discriminadas, temos algumas leis (não muitas, mas têmo-las) que aplicam uma discriminação positiva às mulheres, ou seja, concedem-lhes ligeiramente mais benefícios (dirão as feministas porventura que não são suficientes!) numa tentativa de tornar a nossa sociedade mais egalitária. Por exemplo, a questão de algumas entidades terem um sistema de quotas para certos cargos — ou seja, se em igualdade de circunstâncias, um homem e uma mulher se apresentam com as mesmas qualificações para determinada vaga, e se a quota de mulheres não estiver ainda preenchida nessa organização, então a mulher será escolhida primeiro.

    Outro exemplo é a participação nas provas desportivas. Actualmente, a divisão entre «homem» e «mulher» é ainda baseada no que está escrito nos documentos de identificação — seja a atribuição do género à nascença OU a mudança de género posterior. Mas isto causa um problema: quando uma mulher trans ainda não fez o tratamento hormonal completo (ou nem sequer o deseja fazer) e tem níveis de testosterona tipicamente masculinos no sangue, então desenvolve muito mais massa muscular (comparada com mulheres cis da mesma idade, altura e peso) e tem uma vantagem competitiva muito maior. Ou seja, um atleta masculino medíocre, com a despatologização da identidade de género, podia simplesmente mudar os seus documentos para ser legalmente mulher e competir nas provas femininas, tornando-se num(a) atleta com vantagens óbvias. Para eliminar isto, o Comité Olímpico está a promover a noção de que é necessário, antes das provas, medir os níveis de testosterona no sangue, e, dependendo dos mesmos, encaminhar o/a atleta para a prova correcta… Ou seja, escolhe-se neste caso uma análise objectiva ao sangue como sendo o factor que decide o género da pessoa, independentemente da sua identidade, apenas por uma questão de justiça para os/as demais participantes nas provas. Mas esta norma ainda não está a ser aplicada a nível internacional a todas as provas desportivas (e, além do mais, é um pouco polémica…).

    Ou seja: na ausência de qualquer «controle» sobre a alteração do nome e identidade de género nos documentos, muitos homens — que se assumem e se apresentam como tal, e que não tencionam fazer qualquer espécie de transição — poderiam ilegitimamente «abusar» do sistema (quando este favorece um dos géneros através de discriminação positiva). Note-se que nada «obrigaria» à pessoa em questão de se apresentar publicamente de acordo com o género que estaria nos documentos de identificação, pois neste país é concedida a liberdade de expressão de cada um — ninguém é «obrigado» a vestir-se e comportar-se como homem ou mulher, independentemente do que estiver escrito nos cartões de identificação. E penso que esta lei também prevê a possibilidade de livremente efectuar a alteração do nome e do género várias vezes ao longo da vida (para ter em conta os casos de des-transição e de pessoas que apresentem certos tipos de fluidez de género, por exemplo).

    Ora evidentemente que não podemos sugerir o fim da discriminação positiva das mulheres, porque infelizmente ainda vivemos numa sociedade onde essa discriminação existe. Temos, sim, de impedir que as formas legais de discriminação positiva das mulheres não se apliquem àqueles que pretendam «abusar» do sistema, se a afirmação de identidade de género não depender de mais ninguém para além do próprio.

    Também não se pode simplesmente dizer que os casos de «abusos» do sistema deverão ser julgados a posteriori pelos tribunais. É que, legalmente, não são «abusos». Nada impede o prevaricador que mudou o seu género para obter um benefício de afirmar, em tribunal, que aquilo com que ele se identifica, no interior da sua cabeça, não corresponde efectivamente ao que está escrito nos documentos. Afinal de contas, nada impede alguém de se considerar (legítima ou ilegitimamente) «mulher» e apresentar-se no tribunal de fato, gravata e barba, e com um comportamento estereotipicamente masculino — nada disto é ilegal. Não haveria, pois, forma de em tribunal considerar que houve um «abuso» ou uma «fraude», porque a afirmação da identidade de género caberia apenas ao próprio, sem interferência de ninguém — nem sequer um tribunal poderia considerar o contrário, ou reverter a informação na documentação legal, pois isso seria um crime contra a identidade, protegido justamente por esta proposta de lei!

    Portanto cria-se aqui um problema ético e moral que fica num «vazio» legal (e bem sabemos quão hábeis são os portugueses a explorar todos os vazios legais em seu benefício pessoal!). É possível que a proposta final tenha realmente incluído algo para lidar com estas situações (afinal de contas, temos já legislação para lidar com falsificação de identidades, etc. e possivelmente se poderia remeter para estas também o abuso da liberdade de identidade de género — não sei, não sou jurista!). Caso contrário, espero que possa a vir haver debate sobre este assunto antes que seja aprovada a lei.

    É que o pior que podia acontecer para a comunidade trans, após aprovação da lei, era haver uma série de abusos que «forçassem» a Assembleia da República a suspender temporariamente a lei até que esta pudesse ser corrigida!

    Relativamente à questão da resposta do SNS a esta mudança de lei, é importante ter em conta duas situações completamente distintas. Uma coisa é a afirmação de identidade de género. Esta não requer qualquer intervenção médica, pois uma pessoa deveria poder afirmar a identidade de género que muito bem entender e ter os registos da documentação legal no nome e no género com que se identifica, ponto final. A outra coisa é a disforia de género, ou seja, uma pessoa que, pelo facto de não poder afirmar a identidade de género que gostaria — porque a sociedade não é tolerante — sofre atrozmente com a situação. Isto requer tratamento psicológico, psiquiátrico, e eventualmente terapia hormonal e/ou cirurgia. Mas trata-se de algo de completamente diferente!

    Um exemplo semelhante (mas não igual): as orientações sexuais que não a heterosexualidade também foram despatologizadas no 25 de Abril. No entanto, há indivíduos que, por sentirem atrozmente a homofobia, e serem por isso forçados a «fingir» uma orientação sexual que não é a sua, podem ficar deprimidos/ansiosos/traumatizados, etc. O SNS, nestas circunstâncias, procurará ajudar a pessoa em questão para lidar com os seus problemas relativamente à sua orientação sexual. No entanto, uma grande parte dos indivíduos não-heterosexuais não têm qualquer problema com a sua sexualidade e não requerem qualquer tipo de apoio clínico. Ou seja: não é a orientação sexual, em si, que é uma «patologia» (porque claro que não é!); mas é a dificuldade em lidar com o assumir publicamente uma orientação sexual que não seja heteronormativa que pode, eventualmente, conduzir a distúrbios mentais, e esses, sim, deverão ser tratados a nível do SNS. Estes casos serão, penso eu, raros (no total do universo de pessoas não-heterosexuais, bem entendido).

    Já o caso dos indíviduos transgénero a situação é diferente: aqueles que procuram a transição clinicamente assistida, por sofrerem atrozmente com a sua situação, serão decerto a maioria, se não mesmo a esmagadora maioria. Estes continuarão a precisar do SNS. Mas outros — talvez muitos outros — podem achar (correctamente) que não precisam absolutamente nada do SNS. Podem ter plena consciência da sua identidade de género e esta não lhes causar qualquer perturbação mental. Podem não necessitar, de todo, de qualquer tratamento hormonal ou cirúrgico para afirmarem a sua identidade de género e apresentarem-se de acordo com esta (se assim o entenderem, claro está). Ora estes indivíduos, com a aprovação da nova lei, deixam de «sobrecarregar» o SNS porque sabem perfeitamente o que querem e o que não precisam de todo — basta mudarem os documentos e pronto. Portanto, em certa medida, o SNS, com a aprovação desta lei, poderá distribuir melhor os recursos escassos que tem para acompanhar os casos de pessoas transgénero que efectivamente precisam de ajuda clínica, deixando de fora aqueles que não precisam de todo mas que, por virtude da lei de 2011, são «obrigados» a passar pelo SNS apenas para terem autorização para um processo puramente administrativo.

    É evidente que só ao fim de alguns anos é que se poderá ter dados estatísticos relevantes que mostrem a diferença do número de alterações aos documentos antes e depois da nova lei, e o número de casos que deixam de passar pelo SNS porque não necessitam dele. Eu acho que não irá haver grande diferença — não mais de 5-10% de diferença — mas posso, evidentemente, estar completamente errada. Parto apenas da amostra extremamente limitada a que tenho acesso — as pessoas que conheço pessoalmente — e nenhuma delas pode dispensar o SNS, mesmo que esta lei estivesse em vigor. É claro que cada pessoa terá uma experiência diferente. E é também reconfortante saber que, com esta lei em vigor, pode-se primeiro mudar o nome e o género na identificação, e só depois começar o longo processo de consultas para as várias terapias e cirurgias…

    1. Cara Sandra,

      muito obrigado pelas suas palavras, são uma óptima adição à discussão que este tema certamente terá nas próximas semanas. Esperemos que a “boa-vontade” deste projecto não seja, como bem disse, abusada por aqueles que pretendem apenas beneficiar do sistema sem qualquer interesse verdadeiro na questão.

      Estaremos atentos, mais uma vez obrigado pela sua passagem aqui.

  3. Incrível… vem um homem T que é uma inspiração fantástica para todos nós comentar, e ignoram-no! Vem um crossdresser com fetiche por fumar (?) falar de coisas q n sabe e n se lhe aplicam, e agradecem o comentário!

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