Mariana Pacheco e o Desdém do Correio da Manhã

Mariana Pacheco, actriz e protagonista da telenovela da SIC Coração D’Ouro, decidiu, segundo a revista Sábado, “quebrar preconceitos e assumir a sua paixão por Filipa Marinho”. É esta a manchete da notícia [ver acima], mas logo no segundo parágrafo podemos ler que, “embora não tenha assumido publicamente a relação, o Correio da Manhã deste sábado revela que vários amigos e alguns colegas da novela sabem do seu romance homossexual”. A revista semanal cita ainda o tablóide e alegados amigos que garantem que Mariana “está apaixonada e, para ela, fez sentido assumir que está a viver um grande amor”. Pois, poderá fazer sentido assumir a sua relação, mas não necessariamente a um jornal tablóide, não é, ó alegado amigo?

Não cabe a uma revista, jornal ou sequer alegados amigos ou amigas fazer o coming out de ninguém, sejam ou não figuras públicas. É preciso que haja uma incoerência tremenda numa pessoa que tenha consequências no seu trabalho ou na sociedade (como já aconteceu com políticos homofóbicos que estavam dentro do armário) para que seja colocada essa hipótese. Em todos os restantes casos essa hipótese deverá ser automaticamente descartada. É uma vida. É uma decisão pessoal que só a própria pessoa deve tomar, quando achar que o quer e pode fazer publicamente. A ideia que lançam de que a decisão em se assumir é tomada pela própria actriz no subtítulo da notícia é enganadora perante os leitores. Em vez de se preocuparem com estas fofoquices tablóides, interessava mais que quem noticia isto se preocupasse com a saúde do jornalismo nacional. O desdém de todos os intervenientes nesta “história” pela vida privada de Mariana – e não creio que haja outra palavra que tanto se adeque – é lixo.

Nota: Obrigado ao Luciano pela dica 🙂

12 comentários

  1. O problema dos outings é sempre o mesmo: expor a personalidade, culpando-a duplamente, por ser LGBT (como se fosse esse o problema) e por escondê-lo (como se isso dissesse respeito ao público). Fazer outings é um sintoma de homofobia, porque implica violência e agressão, pressupondo sempre que ser LGBT é algo para ser desmascarado.
    Só que não…
    Ser LGBT é algo para assumir por cada um/a com alegria, sem medos e sem pressões. Processos de coming out’s há muitos, um para cada um/a de nós. Mas isso não é coming out nenhum, é só fofoca reles.
    (a revista Sábado é do mesmo grupo que o CM – só o layout é que é diferente, no essencial não estarão muito longe)

    1. É isso mesmo que sinto. E este tipo de lixo revolta-me porque um processo que é suposto ser íntimo e absolutamente pessoal, é assim estragado para vender clicks e anúncios (e por isso mesmo não coloquei link).

      😙

  2. Além de tudo isso que escreveste, com que concordo totalmente, essa atitude revela algo mais: o que tantos dizem que bem está, desde que “entre quatro paredes” e não à vista do público, na verdade é algo que atrai e atiça o público especialmente, do contrário veículos de pouca seriedade não apelariam a esse tópico para atrair audiência. Mais uma incoerência (hipocrisia?) do discurso que reprime a população LGBT, e quanto à lusófona, dos dois lados do Atlântico…

      1. Mas devo reconhecer uma coisa, que pensei agora. Nós mesmos temos uma certa ânsia por que gente “boa”, gente “legal”, assuma-se e assim nos infle um pouco a auto-estima que por vezes vai murcha, murcha… Será que somos cúmplices, de alguma maneira involuntária?

      2. Creio que os símbolos são importantes, para que nos dêem força e sirvam de exemplo. Mas a decisão passará sempre pelas próprias pessoas. Que o façam, sim, quando o quiserem e puderem 🙂

  3. É-me absolutamente indiferente se a actriz é lésbica ou não e considero que esse facto não é notícia e como tal não deveria ser abordado em qualquer revista/jornal/blog etc. A vida privada de uma figura pública continua a ser, no meu ponto de vista, privada e como tal só a própria poderia dela falar. Ptto, concordo contigo no conteúdo do post.
    Mas há duas coisas que gostava de referir.
    Uma é questionar a legitimidade (e não legalidade, que quanto a isso não sei opinar) de divulgar o facto apenas porque outro já o fez. Uma busca simples no google permitiu-me verificar que várias publicações optaram por divulgar o facto baseando-se na publicação do correio da manhã. Para mim, isso é “desculpa de mau pagador” e levam todos pela mesma bitola, que é ” a vida privada deveria continuar a ser privada” até que a própria a decida tornar pública. Ora isto leva-me à segunda coisa que gostava de referir. O título do teu post apela apenas para o início do problema. E o resto “da cadeia alimentar” também é, na minha opinião, um problema.

    1. Patrícia, obrigado desde já pelo comentário =)

      Quando decidi denunciar o caso neste espaço, fi-lo porque me senti traído precisamente pela imagem e subtítulo que a revista Sábado decidiu usar. Por princípio, evito ler ‘fofoquices’ e, como tal, acreditei que se tratasse de uma verdadeira notícia, ou seja, que a actriz se tinha efectivamente assumido publicamente. Por isso abri o link que me foi enviado. Qual não foi o meu espanto quando, ao ler o resto do texto, percebo que afinal não foi nenhum ‘coming out’ da própria, mas sim de um alegado amigo aos tablóides.

      Já por aqui escrevi de forma generalizada sobre o princípio que tento seguir em relação aos ‘coming outs’, sejam públicos ou não (aqui: https://escrevergay.com/2014/04/09/assumir-outing-e-outras-receitas/ ), e compreendo o que queres dizer com o teu comentário, porque eu próprio me deparei com essa dúvida (devo ‘alimentar’ o monstro, ou a denúncia valerá a acha).

      Tendo em conta a dimensão do Correio da Manhã e da Sábado, podemos dizer que a informação (ou uma visão dela, aliás) já está cá fora e é sabida do grande público. Cabe a este pequeno espaço (e outros que desconheço mas presumo) denunciar a forma como esta notícia tablóide foi feita. Porque, tal como a ti, é-me absolutamente indiferente a orientação sexual da actriz (posso até acrescentar que desconhecia a actriz até ao momento em que me enviaram o link). Mas pelo que me fizeram saber pelos comentários à ‘notícia’, nós dois não seremos representativos da maioria das pessoas e toda esta questão ainda é considerada um escândalo e um insulto. E é apenas isso que tentei denunciar não colocando qualquer link para os sites do jornal e revista em causa como sempre faço aqui.

      Como disse, é uma dúvida que tentarei responder caso a caso sempre que me deparar com ela e só publicarei sobre casos específicos se achar que a denúncia prevalece sobre ‘os estragos já feitos por outrem’, porque acredito que isto é também defender as vítimas, presentes e futuras, e, enfim, um pequeno contributo contra aqueles que insistem em tomar atitudes homo, bi ou transfóbicas.

      Mais uma vez obrigado pelo comentário e contributo à discussão, beijinho :*

  4. É exactamente isso que queria dizer e essa é, muitas vezes (cada vez mais) a questão com que me deparo. Às vezes o silêncio é a melhor resposta, outras vezes há que abordar a questão de outro ponto de vista. Quanto a mim, fico feliz por saber que tu e, no fundo, este espaço que tem um propósito específico, ponderas essa questão. Aliás, isso ficou patente em outros comentários a este post.

    Infelizmente considero que vivemos ainda num país (para não falar do mundo) muito homofóbico e que na melhor da hipóteses aceita a orientação sexual de cada um desde que seja vivida entre quatro paredes ou quase com vergonha. Por isso, não preciso ler os comentários de jornais e revistas para imaginar o teor da parvoíce (para ser meiga) que por lá foi dita.

    O meu trabalho, cheio de pessoas com uma cultura muito acima da média, permite-me constatar tantas vezes o quão homofóbicos ainda somos – mesmo que não o admitamos. Alguns dos meu colegas são gays assumidos e é notório como essa “característica” está-lhes sempre associada. Apesar de não pôr em causa a sua competência profissional, a sua orientação sexual é muitas vezes questão- e isso num mundo laboral onde a percentagem de gays é (ou pelo menos parece) muito acima da média.

    bjs
    Pat

    1. Tentarei sempre responder de forma mais justa possível a essa dúvida que levantaste (noutros casos escolhi precisamente o silêncio por achar que não seria benéfico para ninguém).

      Por vezes faz-nos bem sair da redoma em que possamos viver e ter noção que muitas pessoas não têm o respeito ou a sensibilidade em relação a este ou outros assuntos como nós. Ao fazê-lo podemos sofrer com as palavras e acções que encontramos fora do nosso ‘mundo protegido’, mas é essencial que haja discussão e que ela chegue a outras pessoas. É uma luta quase corpo-a-corpo, mas se ajudarmos, por pouco que seja, a abrir os olhos a alguém já valerá a pena o esforço. Felizmente sei de exemplos concretos de pessoas que mudaram de opinião depois do esforço que temos feito por aqui, é isso que nos motiva e nos faz seguir em frente. E, já agora acrescento, este tipo de comentários também. Obrigado.

      Beijos

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