Será Guterres Hoje Um Bom Candidato À Liderança Da ONU?

António Guterres, um dos candidatos ao cargo de Secretário-Geral da ONU, disse num primeiro debate que o mundo precisa “urgentemente de liderança e valores. É preciso combater, e derrotar, o populismo político, o racismo e a xenofobia. Estes são valores que defendi toda a minha vida“, acrescentou. Mas será isto verdade? Discussões pseudo-patrióticas à parte, será que Guterres defendeu estes valores toda a sua vida como afirmou no mês passado? Vejamos:

Em entrevista à SIC, em Setembro de 1995, o então Primeiro-Ministro António Guterres afirmou publicamente que “a homossexualidade não é um aspecto que me agrade particularmente” e remeteu para a esposa – explicitando ser ela psiquiatra – a resposta à pergunta que lhe era colocada sobre o seu entendimento da homossexualidade. Recordemos que desde 1973 que a homossexualidade deixou de ser considerada um transtorno pela Associação Americana de Psiquiatria e que este processo culminou na retirada da homossexualidade da lista de doenças mentais pela Organização Mundial de Saúde a 17 de Maio de 1990. Mais, no ano seguinte a Amnistia Internacional passou a considerar a discriminação contra homossexuais uma violação aos direitos humanos. Foi, portanto, absolutamente descabido – e irresponsável – fugir da pergunta remetendo-a para uma psiquiatra quando o assunto há muito que tinha deixado de ser uma questão médica.

Avançando até 1998, a Juventude Socialista conseguiu levar a votação na Assembleia da República uma proposta de revisão da lei da interrupção da gravidez. A votação no Parlamento, com 116 votos “Sim” e 107 “Não”, aprovou a proposta mas Guterres – através de um acordo político feito no dia seguinte com o então líder do PSD Marcelo Rebelo de Sousa – levou a referendo a despenalização do aborto. Apesar de liderar um partido de esquerda, o PS, Guterres militou ao lado do “Não” pelos seus princípios morais e como Católico. Com esta revira-volta política, prolongou assim e até 2007 – ano de novo referendo em que a despenalização por fim foi aprovada – o sofrimento das mulheres que interrompiam a gravidez em condições psicológicas e de saúde desumanas. Colocar-se do lado de uma Igreja patriarcal na questão de direitos humanos é uma opção altamente questionável.

Importa pois perceber, com absoluta clareza, se a posição de Guterres se mantem nestes tópicos. Porque se é verdade que a opinião de uma pessoa pode – e deve – alterar-se num processo de evolução pessoal – veja-se Hillary Clinton que deu, precisamente na Sede da ONU, um discurso histórico na defesa dos direitos das pessoas LGBT ou Barack Obama que mudou a sua posição quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo por influência das suas filhas – é igualmente verdade que o silêncio sobre estes assuntos gera desconfiança e deixa-nos apreensivos quanto aos reais valores que Guterres pretende passar se chegar ao importante cargo de Secretário-Geral da ONU.

Que lhes cheguem as perguntas, que algum ou alguma jornalista tenha a coragem – e a possibilidade – em as fazer chegar. E que as respostas sejam claras, sem mas ou nins. Porque importa saber o que vale hoje António Guterres e em que pilares se apoia. Se os mesmos de outrora ou se, finalmente, se emancipou. Porque não nos podemos vender por menos.

Para terminar, um vídeo do cessante Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, contra a homofobia e transfobia, sem meias-palavras e como deve ser:

 

Actualização 5 de Outubro:

Segundo o Público: “13 a favor, nenhum veto. Guterres vai mesmo liderar a ONU: À sexta votação, António Guterres recebeu luz verde para a liderança da ONU. Última votação realiza-se nesta quinta-feira.”

E nós vamos ficar especialmente atent@s ao seu mandato depois do excelente trabalho de Ban Ki-moon na defesa dos direitos das pessoas LGBT e na luta contra a homofobia no Mundo.

Actualização 15 de Outubro:

Um primeiro bom indício:

Apelo a todos os Governos e sociedades que promovam os valores da tolerância e respeito pela diversidade e que construam um mundo onde ninguém tem que sentir medo devido à sua orientação sexual ou identidade de género – António Guterres (14 de Outubro 2016)

6 comentários

  1. Não me parece que haja contradição entre as afirmações agora proferidas e as posições anteriormente assumidas por Guterres relativamente à homossexualidade ou ao aborto.
    Desde logo porque o que ele afirma agora refere-se ao racismo e à xenofobia, que são, parece-me que de forma incontestável, valores que cabem no quadro axiológico da igreja católica.
    Por outro lado, Guterres sempre foi, de forma assumida, um católico conservador (como Marcelo, de resto), e por isso não surpreende que, relativamente a assuntos como a homossexualidade ou a descriminalização do aborto, entre outros, as suas posições sejam alinhadas com as mais conservadoras da igreja.
    E isto não tem a ver com o ser-se de esquerda ou de direita. É simplista, e erróneo, pensar-se que o que divide as pessoas em questões fracturantes tenha a ver com o seu alinhamento politico-partidário (senão, veja-se a enorme dificuldade com que o PCP sempre lidou com a questão da homossexualidade, nomeadamente no que se refere aos seus militantes e dirigentes).

    Só a modo de declaração de interesses, sou homossexual e votei a favor da despenalização da interrupção da gravidez no referendo a que se refere. E, já agora, ateu.

  2. Miguel, as declarações iniciais serviram apenas de ponto de partida para explorar o tema dos ideais que Guterres aparenta defender e explicitar a omissão das temáticas LGBT e de igualdade de género.

    Concordo igualmente com o facto destas questões não serem de esquerda nem de direita (com exemplos de dificuldades em ambos os lados ao lidar com estes assuntos), apenas mencionei esse facto porque no caso da legalização da interrupção voluntária da gravidez os chamados partidos de esquerda votaram numa direcção e os de direita noutra, tendo Guterres juntado-se a estes últimos (apesar de líder de um partido de esquerda). Já por aqui criticámos (e aplaudimos) todos os partidos sempre que achámos merecedores dessa crítica (aplauso).

    Obrigado pelo comentário.

Deixa uma resposta