Olhar uma última vez para ‘Looking’: de dentro para fora

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Ainda não consegui perceber bem as razões por detrás do cancelamento de ‘Looking. Já tive 17 meses para digerir esse facto incontornável e não cheguei a nenhuma conclusão viável. A HBO já manteve séries com menos audiência e quis distinguir-se – mas a perder cada vez mais terreno para os canais streaming – pela programação variada que promove. A realidade é que desde o início que ‘Looking‘ foi extremamente divisiva: o público em geral não parecia criar uma verdadeira identificação com estas personagens e as próprias pessoas dentro da comunidade pareciam querer distanciar-se delas como uma praga. Muita tinta virtual se escreveu sobre a representação falaciosa de pessoas LGBT na série, com personalidades, dilemas e dramas demasiado estereotipados para ditar a mudança de pensamento sobre quem e aquilo que somos. Tem sido um assunto recorrente por aqui nas passadas semanas, mas a sarcástica Doris disse-o melhor, em palavras gritadas numa discoteca depois de uma briga perfeitamente disparatada: “Adoro quando gays discutem com outros gays sobre o que é ser gay”. Touché Senhor Haigh, touché.

Falo de Andrew Haigh claro, criador da série, realizador deste filme e responsável por obras-primas como ‘Weekend’ e ‘45 Years’. A perspectiva de Haigh no cinema actual é única e podia perder mais uns quantos textos a discutir a singularidade do trágico amor de Russell e Glen ou o abandono e dor na dança derradeira de Charlotte Rampling, mas deixo isso para “outras núpcias”. No entanto, quando a primeira temporada de ‘Looking‘ começou a ser exibida, parecia que Haigh estava deliberadamente a perpetuar estereótipos homonormativos de forma extremamente calculada para danificar de alguma forma a integridade da comunidade gay. Aborrecida, ofensiva, homofóbica – alguns dos adjectivos aplicados por jornalistas do meio, bloggers e comentadores variados.

Muitas das críticas maiores caíam sobre Patrick, protagonizado pelo alumnus da Broadway Jonathan Groff, um típico jovem adulto americano – bonito, bem criado e indistinguível – que parecia criar caos emocional em cada (má) decisão que tomava. Nele se concentrou muito do ódio e desdém que ‘Looking‘ aglomerou, como se nele se conseguisse conjurar todos os preconceitos que se poderia ter em relação a um homem gay, branco, americano, privilegiado. Como se fosse impossível mostrar realisticamente uma personagem profundamente falhada na sua formação sentimental e social, a cometer erros a cada virar de esquina. Correndo o risco de ser condescendente, muitas das vezes que odiámos Patrick foram vezes em que nos revimos nos comportamentos cáusticos e perniciosos que sempre quisemos esquecer ou esconder.

Desde o final da segunda temporada, uma das mais brilhantes e inspiradas vistas em televisão na última década – e não afirmo isso levianamente – muito se passou na vida destas personagens. Patrick afastou-se de Richie e Kevin, fisicamente e emocionalmente, e deixou São Francisco para um emprego em Denver. Ou seria Boise? Salt Lake City? Continuando. Volta agora para o casamento de Agustín e Eddy (!) e fechar capítulos. Patrick faz assim com a sua vida aquilo que Haigh pretende fazer com as personagens que criou. Existe em Patrick uma nova maturidade misturada com uma, por demais auto-inflingida, tristeza. Quando os seus olhos reencontram os de Richie ou de Kevin existem neles uma mágoa profunda, uma vontade tremenda de ter sido uma outra pessoa naqueles momentos que definiram a sua vida.

Numa deambulação inebriada, depois de um encontro com um jovem que confessa a um Patrick chocado ter tido o seu primeiro namorado aos 16 anos, questiona-se sobre o seu coming out tardio e como as coisas teriam sido diferentes se ele tivesse acontecido mais cedo e conseguido livrar-se da sua própria homofobia antes de chegar à idade adulta. Pergunta sem resposta, mas uma que recorrentemente atormenta a nossa cabeça e cada decisão que tomamos. A realidade é que a maturação só acontece quando finalmente nos aceitamos e somente a partir daí começamos a dolorosa aprendizagem através de tentativa e erro. A geração que agora tem 30 anos, e se sente finalmente livre para explorar a sua sexualidade e personalidade sem reservas, parece estar ainda a sair da puberdade e a viver a adolescência pela primeira vez. Sinal dos tempos, em que as novas gerações não têm de passar por este tormento tão ‘primeiro-mundista’, vápido e aborrecido, mas não por isso menos válido ou assombroso. Somos eternos adolescentes, inconformados e muitas vezes patéticos, e assim o vamos permanecer até ao final dos nossos dias. Mas não tenham pena, já temos pena suficiente de nós próprios para três existências.

Voltando a ‘Looking‘… ele nunca foi só de Patrick e Haigh faz questão de nos deixar despedir condignamente de todas as personagens que aprendemos a amar. Dom, focado no trabalho e em nada mais, parece ter desistido da vida romântica por completo num abandono consciente e forçado, uma “freira do frango frito” como afirma Doris, a sua melhor amiga e que aqui tem um lugar destacado, muito graças a uma interpretação cativante e magnética de Lauren Weedman. Já Agustín, a personagem mais sofrível e sofrida desde o primeiro dia, encontrou a sua redenção em Eddie, o homem com quem agora vai casar. O desencanto com que Haigh contempla o seu envelhecimento através de todas estas personagens é terno e doce, mas não menos assustador por isso. A aceitação dessa força destruidora e maior que a própria vontade que é o tempo, é um dos pontos fulcrais do pathos de todas as personagens e é essa pressão, tão simultaneamente natural e artificial, que as move no meio da tempestade que se avizinha sempre do outro lado da Golden Gate.

A agora perceptível deambulação temática deste texto parece espelhar o carácter aleatoriamente contemplativo de ‘Looking‘, tão mundano e não forçado. É talvez essa perspectivação, que tem tanto de madura como de imberbe ou de fantasiada como de realista, de que mais falta irei sentir. A identificação com personagens ficcionais nunca foi ditada por uma total sobreposição com quem elas são ou da compreensão lúcida de todos os seus gestos. Mas vejo-me em Patrick de uma forma que nunca antes me foi proporcionada nesta era tão informada e também tão crítica de tudo o que foge e encaixa na normativa do que nunca foi nem poderá ser normativo. Vejo-me em Patrick porque também estou ainda a aprender a navegar na minha própria vida e cada dia é um desafio alienígena e desgastadoramente quotidiano. Vejo-me em Patrick porque vejo em Patrick a necessidade de se ver noutros para chegar a si próprio. E recuso-me a aceitar que me digam que isso não é válido porque é um estereótipo e não representa ninguém. Representa-me a mim.

O último momento de ‘Looking’ vê a câmara a afastar-se do café onde este grupo de amigos acaba a noite, destacando o bairro do Castro como outro velho amigo com quem ainda podemos confidenciar. Nele se espelham as nossas lutas e a nossa História. E aqueles e aquelas que A fizeram e fazem: as bichas de lantejoulas e as machas de colarinho bem passado, as lésbicas de flanela e as de Loubotin, as drag queens histriónicas e os hipsters desgrenhados a atirar para o lenhador. Aqueles e aquelas que viveram e morreram, e vivem e morrem, por avançar com a (nossa) História. Os que A negam ou A querem deixar para trás estão condenados a que Ela se repita, da pior forma possível. E isso é bem mais fétido para a maldita ‘imagem’ da comunidade gay que um grito efeminado no Príncipe Real ou um drama suado de Sábado à noite. Venham eles, ao som de Britney de preferência.

Looking: The Movie‘ teve antestreia exclusiva na sessão de encerramento do Queer Lisboa 20 e está em exibição no TV Cine a partir de 25 de Setembro.

6 comentários

  1. Looking foi sem dúvida das séries que me marcou mais nos ultimos anos.
    Não percebo até hoje todo o ódio que gerou, quando tantos filmes com imenso sucesso com audiencias alvo LGBT se focam em estereótipos de forma muito mais vulgar.
    Talvez seja por estar perto da faixa etária de patrick e Augustin, talvez seja eu próprio um cliché, mas acho que foi uma pena a série ter sido cancelada.
    O filme foi um despedir agridoce das personagens, e agora subitamente, looking virou série de culto. E muitos dos que detestaram e bradaram aos céus pela sua existência, proclamam que o seu cancelamento foi prematuro.
    É assim a vida :/
    Ótima análise, dá gosto ler.

  2. Nuno, tenho de te dizer que este foi dos melhores textos que li sobre o Looking. Obrigado. Eu sou de Lisboa, mas vivo há 5 anos em São Francisco. Acompanhei as filmagens da série (a primeira temporada foi toda filmada no meu bairro) e senti emoções semelhantes ao que descreveste, ao longo dos episódios. Posso confirmar que a série gerou várias reacções viscerais aqui na comunidade LGBT local. Talvez por mostrar coisas que ninguém quer ver (em si mesmo). A personagem do Patrick é particularmente difícil de digerir, talvez porque ninguém aqui consegue imaginar alguém LGBT, que supostamente vive aqui há 10 anos, com tantas inseguranças com a sua sexualidade. Eu penso na minha própria vida desde que me mudei para aqui, e como aprendi a ser mais livre e descontraído – e o choque que sinto cada vez que volto a Lisboa nos olhares da minha própria comunidade quando faço um vogue com as mãos a dançar numa discoteca gay qualquer. Um momento bonito que tive o privilégio de ver foi a performance de um one-woman-show da Lauren Weedman no bar STUD, dias depois do último dia de rodagem do filme, com o cast e crew todo presente. As emoções estavam todas à flor da pele. Era visível o quanto esta séria tocou os actores (o Jonathan Groff estava ao meu lado a jorrar lágrimas agarrado ao Murray Bartlett, enquanto Weedman cantava canções no palco). Anyway, obrigado por este texto tão bonito e maravilhosamente bem escrito, fez-me lembrar estes momentos especiais. ❤

  3. Hugo, MUITO obrigado pelas palavras de apreço e pela partilha. De facto foi uma série super divisiva mas creio que com o passar do tempo vai ganhar lugar reconhecido na História da comunidade LGBT nos media e assumir esse lugar marcante e revolucionário. Abraço

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