A Idade Média… Queer?

Quando ouvimos “Idade Média” algumas palavras vêm à mente: peste, clero, bruxas; queer não é seguramente uma delas. E embora as três primeiras tenham um fundo de verdade não se deve reduzir um período de mil anos, entre a queda do Império Romano no séc. V e o Renascimento do séc. XV, a uma série de desgraças; podemos perguntar-nos: durante este tempo onde estavam as pessoas queer? E mais particularmente, estavam em Portugal?

Para responder a esta pergunta há que perceber a sua formação, recuando a um tempo em que o país não existia, mas sim um vasto território mais ou menos triangular, partindo dos Pirinéus, com o Mediterrâneo de um lado, o Atlântico de outro, e fechado em cima pelo Cantábrico. Os primeiros migrantes a entrar nesta Península foram Celtas, no séc. X a.C., vindos das estepes da Eurásia ao longo de gerações. Aqui encontraram o povo Ibero, cuja origem é desconhecida; e a Península foi conhecendo mais pessoas: a partir de VII a.C. vieram Gregos, Fenícios do Líbano, e Cartagineses da Tunísia. Em 200 a.C. Roma decide dominar a Península, mas a oposição das tribos locais é tanta que passam 400 anos até a Península Ibérica ficar sob domínio Romano. E assim mantém-se até 395 d.C., quando a revolta de Constantino III (descendente de Alanos vindos do Irão), acaba com o poder Romano aqui, e abre as fronteiras a novos povos: Suevos a norte do Rio Douro (Galécia) e Alanos e Vândalos no Centro e Sul. Em 415 chegam os Visigodos, que reinam a partir de 585, mas entram numa crise de sucessão em 711 que leva à entrada de Ibne Moçar na Península, comandando norte-africanos Berberes, Sírios e Árabes. Instalam-se no Sul e são combatidos a partir de 740, levando à movimentação de povos Moçárabes (cristãos que tinham viajado para zonas islâmicas) até ao Norte e Neogodos (descendentes de Visigodos, Bascos e Cantábrios) para Sul. No séc. X a cidade de Cale (Gaia) é tornada independente do reino de Leão, volta a ser anexada, revolta-se no séc. XI, e quando Alfonso VI entrega territórios no Minho à filha Dona Teresa, e ao genro D. Henrique, forma-se o Condado Portucalense cuja independência total é conquistada em 1143 por D. Afonso Henriques: o Reino de Portucale vai da Galiza até Coimbra, e a Reconquista Cristã segue o seu curso para Sul, sendo D. Sancho I quem atinge o Algarve, ganhando assim Portugal a forma rectangular que hoje conhecemos.

Ao contrário do que se possa imaginar, as relações entre tantos povos não era um pesadelo: a maioria vinha com o intuito de fazer comércio e o diálogo estabelecia-se através dos objectos que podiam ser trocados. E embora até certo ponto se mantivessem centrados sobre si próprios, as relações formavam-se e diferentes culturas influenciavam-se mutuamente; ao ponto de Estrabão, no princípio da era Cristã, escrever que as diferenças entre povos Celtas e Iberos eram quase nulas. E mesmo quando tinham a intenção de conquistar, as trocas culturais aconteciam, como vemos no caso dos Romanos que foram mudando localmente de acordo com os territórios que habitavam. Quando o domínio muda de mãos o discurso oficial esforça-se por denegrir a imagem do povo antecessor, como fez a Reconquista Cristã à memória Islâmica: durante séculos manteve-se a imagem do “mouro” bárbaro e incivilizado, invasor de uma Europa branca. Hoje reconhece-se que esta ideia é um mito e a Península Ibérica que o diga, pois desde cedo foi uma zona estranha, a Extremadura como os Romanos lhe chamavam; era uma zona diferente da norma, de gentes com genealogias misturadas e “impuras”, e muitos contactos com os mundos periféricos do Oriente e do Norte de África. Podemos dizer com segurança que era um reduto da Europa, exótico e socialmente queer .

Aqui dentro, já na entrada do primeiro milénio, os contactos entre povos queriam-se limitados: o casamento inter-religioso era proibido e punido com a morte. Mas a Lei não era (sempre) a vida real: os processos de mudança eram muito longos, séculos em que pessoas muito diferentes partilhavam os campos, os mercados e as ruas; um multiplicar de “zonas cinzentas”, onde as identidades e heranças históricas se cruzavam, numa miscigenação e reinvenção constantes. Quando surgem, os primeiros livros de leis galego-portugueses desde cedo assumem uma posição clara em relação à sodomia: “peccar contra natura”, diz o Fuero Real de Alfonso X de Castela, o pecado “sobre todollos peccados (…) mais torpe, çuje e deshonesto”, segundo as Ordenações Afonsinas. É fácil perceber que numa sociedade patriarcal, onde o homem e a virilidade estavam acima de tudo, quem não fosse um “homem à séria” não tinha valor, e nos códigos legais não vamos encontrar muita coisa sobre pessoas LGBTQ.

Mas o Penitencial de Martin Pérez foca bem o “Pecado Sodomítico”, dando uma lista de agravantes tão longa e variada, que das duas, uma: ou Martin Pérez tinha uma imaginação muito fértil, ou a sodomia era muito mais comum do que se possa pensar! Vejamos então a expressão popular; na Idade Média a escrita era um saber raro, e a comunicação era, na sua maioria, oral: histórias, anedotas, adivinhas, e um caso muito particular Galego-Português, a Cantiga de Escárnio e Maldizer (CEM). Cantadas por jograis viajantes que entretinham as populações por onde passavam, estas cantigas eram críticas a pessoas conhecidas de então e um retrato sarcástico da sociedade, com os temas mais profanos: adultério, jogo, enganos de amor, vinho, comida, sexo e, particularmente, a sexualidade fora da norma. Aquilo que a Lei proibia, a CEM transgredia, não de um ponto de vista moral superior, mas por narradores que se encontravam imersos nos assuntos. O uso inteligente da linguagem era fundamental e por vezes ela era feroz e abertamente obscena, como Pero da Ponte quando escreve

“Eu falo mal, com’homem fodimalho,
quanto mais posso destes fodidos
e trovo a eles e a seus maridos;
e um deles fez-me grande espanto:
topou comigo e abriu o manto
e quis em mim assentar o caralho.”

Esta exibição do sexo de forma crua e com intuito de chocar é uma suavização dos primatas que mostram os genitais como forma de confronto; a CEM tinha esta dimensão de fanfarroice desafiadora. Mas na maior parte dos casos o jogo de palavras era mais comedido e surgia através de trocadilhos como na cantiga da Peixota (um trocadilho que penso não ter de explicar):

“Noutro dia em Carrion,
queriam um salmon vender,
e chegou lá um infançon:
e, logo que o foi ver,
cresceu-lhe dele tal coraçon,
que disse a seu home’ enton:
-Peixota quer’hoje eu comer.

(…) o preço não recearei,
ou hoje não comia, de pran,
bem da peixota e do pan,

(…) e do salmon que agora vi,
antes que o levem dali,
vai-m’uma peixota comprar.”

Outro exemplo é o do Arraiz de Rói Garcia: recorrendo ao sentido metafórico dos verbos desseinar e enseinar (emagrecer e engordar), Afonso Méendez de Beesteiros conta-nos como o arraiz de D. Rói Garcia o fazia emagrecer e engordar por excesso ou falta de actividade física, quando estava em casa ou se ausentava:

“O arraiz de Rói Garcia,
que em Leiria tragia,
desseinou-o;
e depois veio outro dia,
e enseinou-o.

Não fez mal por aí além:
serviu-se dele mui bem,
desseinou-o;
e depois veio a Santarém,
e enseinou-o.

(…) Ainda vos eu mais direi:
por quant’eu dele vejo e sei,
desseinou-o;
e depois veio a casa del-Rei,
enseinou-o.”

A CEM usa muitas vezes a sexualidade desviante como um insulto político: por ser o contrário da ideal virilidade sã, corajosa e leal, o que era “estranho” era fraco, enganador e maldoso. Por exemplo, Fernan Díaz, uma figura que surge em nove cantigas, todas elas falando da sua possível homossexualidade e da sua ambição política; Díaz era meirinho, um oficial de justiça, que a dispensava de forma muito própria, segundo Pero Garcia Burgalês:

“Com vontade de ter a terra em paz
Se dalgum malfeitor souber,
vai sobr’ele; e se o pode colher
na mão, logo dele justiça faz.

(…) Tal justiça faz com’eu lhe vi:
deixou a gente adormecer, e então
passou a noite sobr’um home a Leão,
e fez sobr’ele grande justiça logo ali.”

Esta cantiga, como a antes mencionada, sobre a peixota, são exemplos de como a classe dos infanções era vista como arrogante e pouco inteligente. Também sobre o pobre Fernan Díaz, contam a história de quando levou o seu olho (uma pedra preciosa, entenda-se) a um ourives “que o olho lhe soubesse encastoar; o primeiro artesão que encontrou era excelente, mas

“quando o olho lhe mediu, então
tão estreito lhe fez o castão,
que lhe não pôde o olho caber.”

Depois foi a outro ourives, um aldrabão que o engana, dizendo que o olho é falso e trocando-o por outro, esse sim uma imitação:

“trocou-lhe o olho que daqui levou
e disse-lhe que era de çafi,
uma má imitação de Puy,
e meteu-lhe um grand’olho de boi,
aquele maior que no mundo achou.”

A sexualidade desviante enquanto algo estranho surge aliada à diferença cultural e religiosa; diz-nos Estêvan da Guarda que Álvar Rodríguiz, talvez um combatente pela causa Cristã, estava envolvido com um homem, mas mais grave ainda, um mouro!

“Álvar Rodríguiz decidiu tomar
este mouro, que não quis poupar
a seu foder, a que tão moço veio;
pois Mestre Ali diz que dias há
que sabe que Álvar Rodríguiz já
fode este mouro a caralho cheio.”

Para agravar ainda mais o cenário (e porque o debate sobre a monogamia já vem de longe), aparentemente era uma relação aberta,

“(…) pois Mestre Ali jura por sua fé
que Álvar Rodríguiz, certo é,
fod’o mouro como fod’outr’home.”

Mesmo com a linguagem por vezes pouco simpática, as cantigas não falam das pessoas LGBTQ como falam os Livros de Leis, que em Portugal, no séc. XIV, recomendavam que quem “(…) tal peccado fezer (…) seja queimado, e feito por fogo em poo [pó], por tal que já nunca do seu corpo, e sepultura possa ser ouvida memoria.. Os jograis das CEM condenam ao mesmo tempo que brincam, deixando a caravana passar. Da mesma maneira que os jograis não se moldavam aos ideais de pureza e castidade dos grandes trovadores de corte, as pessoas LGBTQ não se conformavam com o sistema, incomodavam os acomodados. E talvez os jograis chegassem a identificar-se, numa certa camaradagem, com as personagens sobre quem cantavam; como o parece fazer Afonso Eanes de Coton, ao falar com Mari’ Mateu, uma das (lamento dizê-lo) poucas lésbicas que surgem nas CEM, acerca da sua falta de sorte:

“Mari’ Mateu, quero ir-me daquém,
porque não posso um cono arranjar;
quem mo daria não o tem,
e quem o tem não mo quer dar.

Mari’ Mateu, Mari’ Mateu,
tão desejosa qu’és de cono como eu!

E já fez Deus de conos abundar
aqui outros, que não an mester,
mas a mim faz-mos muito desejar
a mim e a ti, mas tu és mulher.

Mari’ Mateu, Mari’ Mateu,
tão desejosa qu’és de cono como eu!”

São várias as figuras: Bernal Fendudo, que ia à Terra Santa matar os mouros de exaustão na cama (o primeiro power bottom?), Marinha Sabugal que também ia à Terra Santa levando de arrasto uma companheira que não queria ir, Maria Leve que contra sua vontade tinha de mudar de casa porque a sua manceba (companheira) não gostava de onde viviam, e um desfilar de soldadeiras como Maria Peres Balteira, Garcia Maior, ou Dona Ouroana. Tod@s passam em frente à boa conduta acenando um grande manguito. É ilusório pensar que eram seguramente pessoas queer; na sua larga maioria nem se sabe se na verdade existiram. Mas o facto de surgirem tantas vezes diz-nos que outras como elas existiam e eram conhecidas entre os sécs. XII e XIV, e que as suas sexualidades eram uma arma contra a homogeneidade imposta. São figuras que merecem ser conhecidas, por pertencerem ao folclore português, e especificamente ao nosso folclore LGBTQ.

Glossário
çuje - sujo
fodimalho - viril
infançon - Infanção; título antigo da baixa nobreza
coraçon - vontade
de pran - seguramente
pan - pão
Arraiz - Capitão
tragia - mandava
encastoar - incrustar uma pedra num objecto de metal
çafi - vidro colorido
Puy - região do sudoeste de França
olho de boi - pedra decorativa, de baixo valor comercial
ir-me daquém - ir-me embora
não an mester - não têm necessidade
soldadeira - prostituta (paga a soldo)

Para Aprofundar: História de Portugal (vol. 1), José Mattoso; Cantigas d’Escarnho e de Maldizer dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses, M. Rodrigues Lapa; Sodomíticos e Cornudos – Dois Aspectos da Sátira nos Cancioneiros Galaico-Portugueses, Berta Pimenta, Leonardo Parnes, Luis Filipe Krus; Queer Iberia, Josiah Blackmore, Gregory S. Hutcheson. 

Nota: As cantigas apresentadas encontram-se adaptadas à língua corrente. As versões originais, com aquilo a que Esther de Lemos chamou o “sabor municipal” da palavra medieval, podem ser lidas (com dicionário e explicações) no site da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa: http://cantigas.fcsh.unl.pt

3 comentários

  1. Que bom, Nota! Parabéns, grande texto, grande levantamento.
    E que bom também a Escrever Gay lançar este olhar académico e ao mesmo tempo tão refrescante da nossa cultura.

    1. Obrigado Ana! A intenção é mesmo divulgar estes textos, que estão debaixo do nosso nariz, mas não são tão conhecidos como merecem. 🙂

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