Homofobia E Sexismo No Desporto Com John Fennell: “O Coming Out É Um Momento Poderoso”

Foi na passada semana que se deu no Centro LGBT, em plena Rua dos Fanqueiros em Lisboa, a tertúlia sobre “Homofobia e Sexismo no Desporto” que reuniu várias figuras desportivas e políticas, tendo-se focado no atleta olímpico canadiano John Fennell que esteve em Portugal vários dias para participar em várias palestras e discussões em escolas e universidades.

Com moderação a cargo de Nuno Pinto da ILGA Portugal e num ambiente descontraído de janelas e portas transparentes para a rua – não fosse a questão da visibilidade central na filosofia do espaço, o Embaixador do Canadá, Jeffrey Marder, começou por introduzir o atleta ao explicar que “um dos seus trabalhos em Portugal é defender os direitos humanos, a diversidade e combater a discriminação“, valores esses que, acrescentou, são partilhados entre os dois países.

Confessou, no entanto, que “há ainda muito por fazer“, daí o trabalho realizado com o jovem atleta olímpico “num sentido de sensibilização” com especial atenção aos mais jovens, ao falar com alunos de várias escolas e respondendo às suas questões e dúvidas.

Introduções feitas, foi a vez de John Fennell falar. Acessível e com o trabalho de casa bem estudado, o atleta começou por perguntar à plateia de algumas dezenas de pessoas se “alguém aqui sabe o que é o Luge?“. E se algumas pessoas sabiam a resposta – “três pessoas na sala parecem saber… [risos] – a verdade é que não é uma modalidade popular em Portugal. Com essa noção, John explicou que o Luge é “uma modalidade em que deslizamos de costas em cima de um pequeno trenós [é precisamente essa a origem da palavra] e onde podemos atingir velocidades na ordem dos 150 Km/h. O que é extremamente rápido, mas também extremamente divertido“, acrescentou.

John recordou também que os Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi, em que participou com apenas 18 anos em 2014, aconteceram “numa altura bastante difícil em relação aos direitos das pessoas LGBT em competição. Nos Jogos Olímpicos devemos representar o nosso país e sentirmo-nos orgulhosos e incríveis, mas para mim esse não foi o caso. Senti que não devia estar ali, que o País que nos recebia – a Rússia – não me queria ali“.

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Foi com este sentimento partilhado com os e as restantes atletas da equipa canadiana que foi criado o programa #OneTeam. É, aliás, este o programa que trouxe John a Portugal: “é um grupo de atletas que fez um acordo com o Comité Olímpico Canadiano e organizações profissionais para levar atletas às escolas que, com a sua voz, promovem mudanças sociais e histórias de inclusão“.

Bastaram três meses depois dos seus primeiros Jogos Olímpicos para que John se assumisse publicamente, quando completou 19 anos, e assim se juntou ao programa #OneTeam “para provocar uma mudança nos meus colegas e nas outras pessoas também, porque sejamos atletas olímpicos ou amigos ou familiares temos o poder de mudar a vida a alguém“.

Com estas palavras John encorajou-nos a fazer precisamente o mesmo, mudar a vida de uma pessoa para melhor. Mas dirigiu também as suas palavras às pessoas presentes na tertúlia que têm o poder de alterar regras desportivas e, assim, têm também maior influência na vida de terceiros, porque “o desporto é um reflexo da sociedade e muitos dos seus problemas são, na realidade, aumentados na prática desportiva“. E concluiu com a esperança de, ao construir um ambiente de inclusão e diversidade entre os jovens, “poderemos realmente mudar o mundo“.

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Tertúlia no Centro LGBT com Nuno Pinto, Ana Chaparreiro, John Fennell e Gonçalo Bernardino.

Os aplausos tomaram todo o Centro LGBT. Depois, quando questionado pelo Nuno Pinto sobre a importância da saída do armário no desempenho desportivo, o John tornou claro: “É uma questão de autenticidade e de fazermos as coisas com paixão. Porque só assim conseguimos sentir-nos plenos. O coming out é um momento poderoso, porque a partir daquele momento podemos realmente focar-nos no desporto.”

Foi dada então a palavra à recentemente campeã nacional de ténis feminino na categoria +45 e coordenadora do Grupo Desportivo MOVE, Ana Chaparreiro, que lembrou que “o desporto deve ser um espaço de integração e liberdade“. No entanto, admite, “muitos e muitas atletas mantêm-se no armário para fugirem a ataques homofóbicos“, dando o exemplo do futebolista britânico Justin Fashanu que, em 1998, após ter saído do armário e depois de ter sofrido sucessivos ataques homofóbicos, se suicidou.

Este foi um longo caminho até aos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro este ano, em que “49 atletas eram assumidamente LGBT e até um casamento entre uma jogadora de rugby e a sua namorada houve“.

Focando-se na componente do sexismo da discussão – e apesar da excelente plataforma para a promoção do desporto feminino – a Ana confessou ter reparado que tal não aconteceu, com “poucos desportos femininos a passarem em horário nobre nas nossas televisões“. Não deixou também de salientar a ironia de ter sido precisamente “uma mulher que conquistou uma medalha [de bronze, pela judoca Telma Monteiro]“.

A Ana, tal como John, reforçou a importância do coming out de atletas, pois ao fazê-lo estão a “quebrar inúmeras barreiras e servem de exemplo aos e às jovens que os têm como modelos de inspiração“. Estes importantes passos unem pais, colegas, professor@s e amig@s na integração de todas as pessoas. Foi neste contexto que, explicou a Ana ao terminar o seu depoimento, se criou o MOVE, para “permitir um espaço seguro onde as pessoas podem jogar, conviver e criar amizades sem discriminação“.

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Os aplausos voltaram a encher o espaço que ia também recebendo mais pessoas naquele final de tarde. Seguiu-se Gonçalo Bernardino, Secretário-Geral da Associação Desportiva Boys Just Wanna Have Fun (BJWHF) e jogador na equipa de Rugby Dark Horses, que anunciou representar “o único clube assumidamente gay em Portugal“.

Explicou então que o clube surgiu porque um dos seus fundadores foi jogador amador no Porto e, enquanto viveu essa experiência, “não se sentiu discriminado, mas viu-se coagido a adoptar certos comportamentos que o constrangeram“. Por isso, ao mudar-se para Lisboa –  e com uns amigos – fundou o clube em 2009. No ano seguinte tornaram-se numa associação desportiva e deram início ao processo de adesão à Federação Portuguesa de Rugby que “teve alguns problemas“. Explicou o Gonçalo que foram “a única equipa portuguesa a entregar pela primeira vez toda a documentação necessária completa e, no entanto, o processo foi reprovado duas vezes“. Só à terceira, e após a intervenção directa do Presidente da Federação de Rugby, decidiram então os delegados alterar o seu voto e aprovar o clube na Federação.

A evolução da associação BJWHF, para lá das vitórias conquistadas pela equipa inicial de Rugby, espelhou-se também na criação de equipas de Voleibol, Natação, Tango e, acrescentou o Gonçalo, “estão a iniciar a equipa de futebol que se estreou no mês de Setembro num torneio em Barcelona“.

O percurso da associação, considera, “não foi caminho fácil, mas foi um caminho extraordinário!” e recorda como “não existiu até hoje em Portugal nenhum atleta de primeira linha que se tenha assumido homo ou transsexual. O único caso que é publicamente conhecido é o de um piloto de Fórmula 1 [Nicha Cabral, o primeiro português na F1] que competiu nos anos 1950 e assumiu a sua orientação sexual numa entrevista que foi depois publicada em livro apenas em 2009.”

Toda a discussão tornou óbvia que, apesar de não existir em Portugal nenhum clube que activamente discrimine no papel pessoas LGBT, na prática não é isso que acontece e o Gonçalo deu um exemplo concreto e pessoal: “Nos Dark Horses, para além de termos tido atletas de outras equipas que se recusaram a jogar contra nós, éramos recebidos com muita frieza, sentíamos que a nossa presença não era confortável para as outras equipas. Depois começámos a ganhar jogos [risos] e as coisas mudaram significativamente.”

E mudaram mesmo, os Dark Horses tornaram-se este ano na primeira equipa portuguesa a ganhar aquela que é a segunda maior competição de Rugby do mundo: a Bingham Cup. Nome que serviu de homenagem, contou o Gonçalo a uma plateia genuinamente interessada, a um atleta norte-americano gay que, a 11 de Setembro de 2001, fez frente  – com outras pessoas –  ao terrorista que ia a bordo do voo 93 e conseguiu desviar o avião que ia, presume-se,  em direcção a Washington e se despenhou na Pensilvânia. Um verdadeiro herói.

Mas a BJWHF não se limita às questões LGBT, dando o exemplo orgulhoso de ter sido também “o primeiro clube sénior masculino em Portugal a ser treinado por uma mulher… e fizemo-lo três épocas consecutivas com duas mulheres diferentes! [risos]

Não deixa de ser peculiar, notou o Nuno, como Portugal, sendo um dos países com uma das legislações mais avançadas do Mundo, existe uma diferença tremenda entre essa mesma legislação e a vida diária das pessoas LGBT, ao que o Gonçalo voltou a chegar-se à frente na conversa e, em tom de ironia, deu novo exemplo: “Quando é perguntado à Federação Portuguesa de Futebol e ao Comité Olímpico Português – e isto foi feito – se havia algum projecto para as questões da discriminação de género e homofobia a resposta que foi dada foi que “não é necessário”“.

Em modo de finalização da primeira ronda, o Nuno Pinto acrescentou ainda que “temos muito trabalho por fazer para garantir a integração das pessoas LGBT e para que elas possam libertar-se da vergonha e do medo e para que haja cada vez mais figuras públicas assumidamente lésbicas, gays e trans“. Considerou igualmente essencial a criação de “leis que garantam que, quando ocorrem casos de discriminação e quando há denúncias, se tomem as medidas adequadas“.

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John Fennell no primeiro dia dos Jogos Olímpicos de Sochi (fotografia por Alex Livesey/Getty Images).

Já com o espaço completamente lotado, o Nuno deu início à ronda de questões que o público presente poderia colocar aos convidados e convidadas. Quando lhe perguntaram o quão diferente seria se o John praticasse um desporto de equipa, este respondeu que tinha conhecimento da pressão e da homofobia que atletas sentiam pelos seus colegas. Isso fê-lo “procurar um desporto individual, em que o sucesso é o meu“, dado que “em desportos de equipa é mais difícil ser-se assumido, pois existe uma hipermasculinização que nem sempre oferece segurança para todos“.

O Gonçalo seguiu acrescentando uma história que aconteceu aos seus Dark Horses: “Quando o clube surgiu criámos o nosso próprio torneio, tal como outros clubes fazem. Lançámos uma nota de imprensa que foi distribuída por vários canais. Esta foi ignorada por alguns jornais e sites, mas houve um – o Mais Futebol – que colocou a notícia da existência do torneio na secção “Incrível”“. Foi este o ponto de partida para o clube e o Gonçalo expôs a grande diferença entre o que o público quer assistir e aquilo que os dirigentes querem dar a esse público. “Há uma pressão para que os atletas não saiam do armário, fazendo-o apenas depois de terminarem as suas carreiras desportivas.”

Numa nova questão perguntaram por que razão – se ao se assumirem LGBT deixam de despender energia numa fachada – não preferiria um dirigente de um clube que os seus e as suas atletas se assumissem em segurança, dado que essa libertação lhes proporcionaria uma melhoria da prática desportiva. Respondeu primeiro o John: “Foi extenuante ter que mudar as histórias e os pronomes que usava durante os treinos e ter estas mentiras preparadas na minha cabeça. Chegou a um ponto em que achei que a situação se tinha prolongado demais e me estava a distrair daquilo que eu realmente queria, porque essa fachada piora a nossa performance e faz-nos infelizes.” Em tom de desabafo conclui que “foi uma perda de energia por demasiado tempo…

O Gonçalo, por seu lado, explicou que no caso da sua equipa de Rugby têm que se preocupar com tanta coisa – boqueiras, protecção de ombros, t-shirts térmicas – que a máscara não pode ser uma delas. “Respeitamos o direito das pessoas revelarem a sua orientação sexual como bem entenderem, mas respeitamos igualmente o direito de não o fazerem. Por isso dizemos, venham ter connosco jogar, nadar, dançar, estamos disponíveis. Se não há ninguém na primeira linha a dar a cara, vamos nós fazer essa primeira linha.”

E concluiu lançando o desafio: “Venham ter connosco e experimentem e, pelo menos, quando regressarem a casa, digam que não praticam jogos de equipa porque não têm jeito, não gostam ou não vos apetece, mas não porque não se sentiram bem-vindos.”

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A Judoca campeã olímpica brasileira (e orgulhosamente lésbica) Rafaela Silva.

A Jornalista Edite Dias, do jornal desportivo A Bola, aproveitou a ronda para perguntar ao John quanto tempo levou a assumir-se e, se a sua performance melhorou depois de sair do armário, por que não há mais homens a fazê-lo? [e acrescentou que lhe parece que as mulheres o fazem melhor, o que levou a plateia ao riso]. O John, sempre prestável e interessado, respondeu que, ao assumir-se aos 19 anos, isso lhe trouxe muitas distracções inicialmente, mas que a sua performance melhorou depois. Está hoje mais forte e mais focado nos seus objectivos.

Mas o atleta olímpico não fugiu à provocação da jornalista: “Em relação às atletas saírem mais frequentemente do armário que os homens, poderá estar relacionado com a sociedade misógina em que vivemos, onde são criadas expectativas aos homens para se comportarem de determinada forma e isso é ampliado no desporto. Felizmente“, acrescentou, “no Canadá e nos EUA há cada vez mais casos de saídas de armário, quer nas modalidade amadoras como nas profissionais.”

Quando perguntado se, com o Primeiro-Ministro canadiano Justin Trudeau extremamente LGBT-friendly, existe hoje um novo contexto político que de certa forma o ajudou, John respondeu que tem participado “em várias palestras por todo o Canadá com o apoio de altos cargos do Governo“, como tal tem para ele “imenso significado saber que a população LGBT canadiana é publicamente defendida“.

O embaixador canadiano voltou a entrar na discussão e explicitou que o Canadá tem com Justin Trudeau um Primeiro-Ministro que se preocupa realmente com os temas LGBT e de igualdade de género. “O gabinete de Trudeau é composto por 50% de homens e 50% de mulheres. O Governo anterior era muito mais conservador, no entanto, em termos legislativos, mostrou preocupação com os direitos das pessoas LGBT e lutou contra a sua discriminação“, dando assim confirmação à ideia de que, sim, há questões que não dependem de cores políticas. Terminou admitindo que “temos hoje um Primeiro-Ministro que é um role model!

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A Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Catarina Marcelino, a discursar.

Terminada a ronda de perguntas ao painel de convidados e convidadas, foi a vez da Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Catarina Marcelino, ter uma última palavra no encerramento da tertúlia. De forma informal e emotiva, explicou que esteve com o John numa escola e que “foi muito importante falarmos com os jovens e ver a sua base de diálogo e das questões que lhes foram colocadas, porque mostram que a nossa sociedade está também a mudar. Não houve gozo ou risos, não aconteceu nada disso.” Animada, continuou: “Esta é a terceira iniciativa em que estou presente onde se falou de felicidade e na forma como podemos atingi-la, porque é isso que nos inspira como seres humanos. Sou mulher, sempre ligada às questões de igualdade de género e a nossa resiliência torna-nos em pessoas muito fortes, capazes de enfrentar situações muito difíceis.”

A Secretária de Estado prometeu igualmente tentar junto das várias federações “fazer passar alguma informação e mensagem que me poderão ajudar a conceber e que agradeço, porque acho que só conseguiremos fazer a diferença em conjunto“. E falou em apostar na Educação, pois esta permitirá construir “uma sociedade que aceita a diversidade” e assim se tornará mais rica com essa diferença.

Em relação a campanhas, para além da Marcha do Orgulho LGBT e do Arraial Lisboa Pride e da enorme visibilidade que trazem às questões LGBT, Catarina disse acreditar que a criação, em parceria com várias associações, de campanhas poderá enriquecer o conteúdo e facilitar a mensagem. Aliás, afirmou ter “muita disponibilidade para trabalhar com todas as organizações de forma a tornar a sociedade mais inclusiva e que as pessoas se sintam mais felizes, que é o que eu quero ser e é o que eu desejo para todos e todas vocês e para todos os portugueses e portuguesas… e para os canadianos também! [risos]

Relembrou também que, não tendo o Justin Trudeau, temos um Primeiro-Ministro [António Costa]com muita abertura a estas questões” e, como tal, “devemos aproveitar estes momentos em que há disponibilidade para melhorar a vida das pessoas“.

Concluiu reiterando que “as pessoas LGBT têm todo o nosso apoio” e que os passos dados nos últimos anos “vão no sentido de uma sociedade mais inclusiva… agora também com o apoio d’A Bola!” [risos]

A tertúlia assim terminou, com a esperança que em Portugal possamos aprender, unidos e unidas, com a experiência canadiana aqui espelhada no atleta olímpico John Fennell e com o apoio do Governo na luta contra a discriminação, homofobia e sexismo no desporto nacional. E já que falamos de exemplos, aqui fica um grande exemplo do mencionado projecto #OneTeam: