O obscurantismo tão palpável. Nenhum acesso à igualdade.

Espanto.

Numa altura em que se fala tanto de burkas e burkinis, de véu integral e outros símbolos religiosos, no contexto dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, em geral, e das mulheres, em particular, há fenómenos desconhecidos da maioria, que atentam contra uma sociedade laica, moderna, democrática, secular e, acima de tudo, respeitadora da igualdade entre todos os cidadãos. Recentemente deparei-me, de forma não programada, com um destes fenómenos, numa cidade icónica entre todas, Nova Iorque.

Num domingo solarengo, após uma visita à “interessante” Coney Island, rumo ao trendy bairro de Williamsburg em Brooklyn, optámos por sair (a party of three) numa estação de metro um pouco mais longe da área que procurávamos, com o intuito de circular pela zona e recolher impressões, como sempre faço em viagens. Surpreendente foi o facto de a escolha aleatória ter justamente recaído num bairro tão singular, no pior sentido da expressão.

À saída do metro, na Flushing Avenue, nada denunciava o que viríamos a encontrar na Bedford Avenue, uns escassos 500 metros a seguir. Aos poucos notámos algo diferente, sem conseguir expressar ou identificar o quê, primeiro apercebemo-nos de que os homens com quem nos cruzávamos usavam todos um traje rigoroso, que se compõe essencialmente de roupa preta e branca, um sobretudo 3/4 preto e um chapéu também ele preto (há vários modelos, embora um em particular semelhante a uma cartola seja o predominante). Além disso, usavam também uns longos canudos de cabelo, naquilo que em Portugal chamamos habitualmente de suíças com 15 ou 20 cms, alguns mais. Nada de assim tão estranho, pois a comunidade judaica em Nova Iorque é muito grande e, diz-se, poderosa, sendo que é comum ver-se homens com similar aparência por toda a Manhattan. Contudo, à medida que nos introduzíamos mais e mais pelas ruas do bairro, a percentagem de homens assim vestidos tornava-se de relevante a quase total. Íamos atraídos por um som de festa, alegre mas muito barulhenta, como é, aliás, apanágio da cidade.

dscf5072Foto: Jorge Carvalheiro

Maior surpresa foi nas mulheres. Menos numerosas do que os homens na periferia do bairro, eram em grande número no seu interior. Em pouco tempo tomámos consciência da enorme diferença com as restantes mulheres nova iorquinas (ainda assim, é de referir que @s New Yorkers são muito divers@s entre si). Pálidas, muito pálidas aliás, vestidas com roupas que esperaríamos em filmes do início do século XX, ou dos anos 40 em ambiente rural. Usavam, na sua maioria, perucas quase sempre iguais, com um chapelinho na nuca (maior variedade na cor do chapéu do que no modelo), e tapavam toda a pele das pernas e braços. Talvez uma em cada cinco mulheres usavam um lenço de seda ou cetim a cobrir todo o cabelo. Apesar de nitidamente vestidas para a festa, as cores dos tecidos eram todas tão pálidas como as suas faces. Além do seu aspeto, algo que notámos imediatamente foi a quantidade de crianças que as acompanhavam. Eram sempre muito numerosas sendo comum estarem rodeadas de 4 ou 5 crianças e ainda um carrinho de bebé. Choque!

Mais … os crianças além de sempre estarem muito próximo da (eventual) mãe (por todos os rapazes aparentarem ter idades inferiores aos 12/13 anos, supusemos que os filhos varões tivessem permissão para se afastar da mãe a partir dessa idade) era comum os rapazes já estarem vestidos de adultos, como descrevi acima, e as raparigas todas de igual, apesar de terem idades muito diferentes.

Choque! O espanto ia aumentando em nós os três.

razia-israeli-irit-sheleg-renana-raz-and-hadas-yaron-in-fill-the-void-2012Foto: IMDb – filme Fill the Void de Rama Burshtein

Chegámos já espantados ao centro da festa, num cruzamento. Eram dois carros elétricos, em estilo andor, num movimento lentíssimo a percorrer Bedford Avenue, emitindo um som para lá de alto e muitos homens em seu redor a saltar e a cantar. As mulheres caladas, leves sorrisos no rosto de algumas, apatia no rosto da maioria, a ver o espetáculo, paradas no passeio, rodeadas pelas suas “ninhadas”, sozinhas ou, por vezes, em grupo de duas ou três mulheres. Não vimos mulheres em grande convívio com homens. Choque! A sensação é de que havíamos aterrado de ovni num planeta longínquo, ou numa comunidade amish, cujas semelhanças com o que víamos eram evidentes. Contornado os carros elétricos, ainda nos apercebemos de que os homens esperavam a procissão num dos lados do passeio e as mulheres e crianças do outro lado.

Por fim, algo que também detetámos foi que todos falavam entre si Yiddish, não inglês. Os letreiros do comércio, as inscrições nos carros, quase todos em Yiddish.

As casas do bairro estavam quase sempre degradadas e tinham um aspeto pobre, algo desleixado. A maioria das janelas era gradeada (as varandas tinham “gaiolas” onde estavam crianças a ver a festa – ver foto), não se percebendo se para impedir assaltos ou para bloquear as fugas de casa.

Ao afastarmo-nos deste bairro, a impressão e o choque eram tão violentos que nos imprimiram uma inquietação por longo tempo. A noite terminou pela parte trendy de Williamsburg, a ver o skyline de Manhattan. Mas os pensamentos sobre este fenómeno não nos deixaram tão cedo, compelindo à leitura sobre aquilo que havíamos presenciado.

Então.

Apelidado pelos locais de O Bairro (“The Neighborhood”) é onde vive uma extensa comunidade (estima-se em cerca de 73.000 habitantes) de judeus ultra-ortodoxos (ultra é um pleonasmo, não é?), mais concretamente a comunidade Satmar, um ramo dos judeus Hasidic. Aqui instalados desde o final da Segunda Guerra Mundial, em 1946, esforçam-se por preservar um estilo de vida nos padrões do século XIX, tal como fora outrora na Roménia, Hungria e Polónia, de onde são, maioritariamente, originários.

satmarfamily_cropFoto: johnwilliamsphd Flickr

A lei Hasidic impõe uma rigorosa separação de género, impedindo os homens de tocar em mulheres fora da sua família (tanto quanto me parece, a lei, como quase sempre, centra-se no homem) e impondo a separação física em quase todos os locais, desde o passeio público, às escolas, aos equipamentos desportivos, aos restaurantes e, pasme-se, ao interior dos próprios lares em determinadas circunstâncias. As mulheres são proibidas de mostrar o cabelo após o casamento, tendo a opção de o rapar e usar cabeleiras ou de usar lenços cobrindo-o integralmente. A própria prática do sexo é sobretudo para efeitos reprodutivos (já sabemos … tudo às escuras, sem toque, sem líbido, sem prazer e até à ejaculação geradora de, atrevo-me, crias). As mulheres também não podem tocar nos seus maridos na semana em que estão menstruadas e na semana seguinte são purificadas num ritual que envolve as autoridades religiosas. Há relatos da humilhante barbaridade de todo o processo.

O casamento ocorre quase sempre nas idades dos 17 aos 20 anos e é acordado pela família, conhecendo-se muitas vezes os noivos no próprio dia do casamento ou poucos dias antes. A média de filhos por casal é, pasme-se, cerca de 8, sendo a segunda comunidade com maior crescimento populacional de toda a região (a comunidade com maior crescimento populacional é outra comunidade de judeus ultra-ortodoxos, residentes também em Brooklyn, no bairro de Borough Park).

Os homens dedicam-se essencialmente ao estudo da religião, obtendo pouca instrução secular e as mulheres, apesar de ter acesso a alguma instrução, são desincentivadas a prosseguir estudos. Tanto homens como mulheres não são incentivados a aprender inglês. Por via disto, a bairro é essencialmente pobre, sendo que uma parte razoável das famílias recebe ajuda do estado para a sua subsistência. Para que alguns homens possam continuar a estudar a religião, as suas esposas podem trabalhar fora de casa, garantindo o parco rendimento doméstico.

O contacto com o exterior deste ghetto é também impedido ou muito limitado ao essencial, havendo vários relatos de pessoas que são pressionadas a abandonar o bairro após serem vistas a conversar ou a acompanhar outras pessoas de fora da comunidade. As casas geralmente não dispõem de televisor, nem rádio e qualquer proximidade com a sociedade secular é evitada. Mesmo o acesso à internet, apesar de não ser proibido, deve ser restrito a questões laborais, especialmente controlado por um filtro de conteúdos muito usado na comunidade Hasidic. Especula-se que com o aparecimento de smartphones e, portanto, com o acesso à internet mais facilitado, esteja paulatinamente a desenvolver-se uma “contaminação” das mentalidades, a despeito da vontade da cúpula masculina dominante.

Acrescento que o folclore visual não é o que mais choca neste cenário. O que verdadeiramente inquieta é a comprovada inexistência de direitos humanos e do princípio da igualdade.

2016-10-07-13-07-24Foto: Carla Gomes

Reflito.

Como será ser gay ou lésbica numa comunidade assim? Como será a vida escondida de uma pessoa transgénero? Como é a vida das mulheres? Até dos homens? Tantos armários.

Nas pesquisas que fiz entretanto, pouco se fala destas questões de género, identidade e orientação sexual. Encontra-se muita informação sobre um caso de um crime de ódio violento perpetrado em 2013 por cinco elementos desta comunidade contra um gay negro (duplamente odiado). Encontra-se também um caso de uma fuga de uma jovem transgénero MTF que decidiu fugir para ser quem era. Em suma, nos poucos relatos escondidos que se encontram, há o desvendar de um enorme tabu sobre esta questão dentro da comunidade. A esmagadora maioria nem sequer saberá da existência de gays, lésbicas ou transgénero.

Num outro patamar, igualmente preocupante, está a vida das mulheres Hasidic, neste caso do ramo Satmar. Com pouco ou nenhum controlo sobre o seu corpo, estão relegadas para o plano da maternidade (recordo que a média de filhos é cerca de 8). Obrigadas a esconder o corpo (não podem mostrar braços, nem pernas, nem cabelo), também não podemos dizer que haja objetificação do seu corpo, enquanto objeto de prazer sexual. Essa objetificação existe, contudo, no plano da própria existência. O empoderamento das mulheres é algo que, aparentemente, ainda ali não chegou. Foi desolador ver a enorme apatia nas suas faces, de cabelo rapado ou tapado e rodeadas de filhos.

Numa semana em que fortes manifestações de rua na Polónia contestam a pretensão do parlamento polaco, apoiado pela igreja católica, de aprovar a proibição total do aborto (#czarnyprotest), em que as mulheres polacas deixam de poder abortar, mesmo quando a sua vida está em risco ou foram vítimas de violação, sendo punidas com pena de prisão quando não possam demonstrar que um pretenso aborto tenha sido involuntário, interrogo-me se estamos, humanidade no geral, no caminho certo. Efetivamente tantos são os casos de proibições, ilegalizações, prisões, coações, repressões e admoestações que vemos de tantos países (espalhados por todo o mundo), alguns dos quais já com passos concretos no sentido de uma sociedade mais secular e mais progressista, dando passos atrás, muito atrás, que me pergunto se isto se propagará definitivamente no futuro. Será uma tendência?

É assustador ver a forma como direitos, já de si muito limitados e débeis, das mulheres e das populações lgbt, entre outros grupos evidentemente (raciais, étnicos, etc.), são constantemente atacados e abolidos em certos setores geográficos. Esta limitação acontece de forma muito evidente em algumas zonas do globo, nomeadamente em África, no Leste Europeu, Rússia, Turquia e alguns países asiáticos, mas também acontece em comunidades fechadas ou setores religiosos ortodoxos, como é o caso da comunidade Hasidic de Williamsburg, mote para este artigo.

Exemplos das diferenças são muitos. Veja-se o caso das tensões geradas com a participação de cantores homossexuais ou transgénero em festivais da eurovisão. Vejam-se também as polémicas a propósito da visita do presidente do Irão a Roma e como foram, para evitar “ferir suscetibilidades”, tapadas estátuas de corpos nus, um legado civilizacional da Europa livre.

Atrevo-me a acreditar e a afirmar que esta separação entre uma sociedade secular, democrática e progressista, com uma tendência para aceitar e celebrar a igualdade, vivida em muitos países, entre os quais o nosso (porém, com muito a fazer), e uma sociedade cada vez mais opressiva, fundamentalista e dominada pela ortodoxia religiosa (qualquer que seja o credo) é de facto o principal embate dos próximos tempos. Esta guerra será muito provavelmente centrada nos direitos das mulheres e nos direitos lgbt.

Obscurantismo nunca. Pela igualdade e pelos direitos humanos, sempre.

dscf5074Foto: Jorge Carvalheiro

Fontes

Wiki:

Satmar (Hasidic dynasty)

Satmar Hasidism

Hasidic Judaism

Williamsburg Hasidic Neighborwood

Hasidic Women in the United States

Fugas do bairro e relatos pessoais:

Heretic Hasidism

Hasidic Williamsburg, as Seen by One Who Left Sect

I was Hasidic Jew – but I broke free

I left Hasidism to become a woman

Notícias e blogs:

Brutality against gay people

Economic dependency from government

For LGBT orthodox jews,  growth of social media creates a safe space online

Women-only Swimming Gets Green Light in Hasidic Brooklyn

Fotos:

Foto de destaque – myjewishlearning.com


5 comentários

  1. É impressionante como à saída de uma estação de metro de uma das cidades mais cosmopolitas e diversas do mundo se depararam com esse cenário. Deve ter parecido mesmo uma viagem no tempo. Incrível relato!

  2. Obrigado por chamares a atenção; quando falamos em religião e repressão, regra geral esquecemos o judaísmo, que merece o mesmo escrutínio que todas as outras. As orações judaicas matinais incluíam um momento em que as mulheres agradeciam a Deus por ter sido “feitas à Sua imagem”… e os homens agradeciam não serem mulheres; sei que isto já foi abolido por alguns grupos (não sei se os Ortodoxos o fizeram) mas é revelador. Vale a pena ficar atento.

    1. É bem verdade. O obscurantismo religioso, fundamentalista, é transversal a todas as religiões e, é mesmo necessário monitorizar esses fundamentalismos.

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