Da apologia jocosa do Masculino Discreto

Este texto pretende trazer uma nova perspetiva sobre um fenómeno, já por estas bandas debatido (“Michas”), dado pelo nome de Masculinidade Discreta. Os seus elementos chamam-se, pois, Masculinos Discretos (MD) e apresentam sinais de evidente superioridade antropológica, face a todos os outros grupos. Este fenómeno é difícil de explicar à luz das ciências sociais e humanas e, por esse motivo, recorreremos à Matemática que, como demonstraremos, nos trará luz e clarividência acrescidas. Dado, contudo, que a linguagem matemática se pode tornar fastidiosa, tentarei traduzir os postulados e teoremas para linguagem corrente, manancial para as inferências lógicas que provam a superioridade dos Masculinos Discretos.

Para podermos iniciar este processo de demonstração é necessário, como sempre o é em processos desta natureza, definir os conceitos envolvidos nesta análise. Os elementos desta análise são os seres humanos, aos quais é atribuído um valor real que, para facilitar, consideramos que define a personalidade do humano em questão. Dadas as características deste valor, podemos classificar os humanos em discretos ou contínuos, em função do seu valor ser, ou não, um valor discreto, descrito em linguagem comum, em ter ou não parte decimal. Valores inteiros para discretos e valores não inteiros para contínuos.

Definição 1. Um ser humano é dito discreto quando o seu valor é um número inteiro. Em todos os restantes casos, o humano é designado por contínuo.

Exemplos:

Humano_1 = 8 – é um humano discreto

Humano_2 = 3,25 – é um humano contínuo

 

Mesmo sendo uma definição conhecida por todos, é necessário definir um ser masculino dos restantes. Por evidência biológica facilmente constatável, os humanos podem classificar-se em masculinos ou femininos, numa lógica binária que é, por ora, a lógica que interessa. Assim, baseando a nossa classificação nos atributos genitais, os humanos com atributo com parte inteira ímpar são masculinos e os humanos com atributo com parte inteira par são femininos.

Exemplos:

Humano_3 = 15 – é Masculino (Discreto)

Humano_4 = 8,2 – é Feminino (Contínuo)

Humano_5 = 7,86 – é Masculino (Contínuo)

 

Importa agora analisar algumas das características dos Masculinos Discretos e colocá-los em comparação com os restantes humanos, de forma a inferir da sua superioridade (tese demonstrada neste texto).

Para tal, só precisamos de mais um elemento matemático – uma operação aritmética, que formalize o relacionamento entre os humanos. A fonte maior de inspiração diz-nos, inequivocamente, “amai-vos e multiplicai-vos”, pelo que a operação escolhida nesta análise para reger o relacionamento humano é a multiplicação. Suspeita-se, essencialmente por via da existência de Masculinos Contínuos, que estes relacionamentos são de cariz sexual, porém não reprodutivos pois, como é sabido, dois Masculinos ou dois Femininos podem relacionar-se sexualmente mas não procriar. O resultado da multiplicação não é, pois, um novo ser humano mas algo mais holístico. Deixamos no vago, contudo, esta informação.

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Noção de semi-grupo Monóide.

Um Monóide é um semi-grupo matemático que é composto por um conjunto finito ou infinito de elementos e por uma operação matemática que opere dois destes elementos. Para ser um semi-grupo monóide, tem que respeitar três axiomas: fecho, comutatividade e existência de elemento neutro.

É fácil, pois, demonstrar que os Masculinos Discretos são uns grandessíssimos Monóides.

Teorema 1. O conjunto dos Masculinos Discretos é um semi-grupo Monóide para a operação de multiplicação.

Demonstração (de cariz mais técnico, o leitor mais leigo pode saltar):

Fecho: Indica que a operação entre dois elementos do conjunto gera outro elemento do conjunto. Ora, dados dois quaisquer humanos Masculinos Discretos, a sua multiplicação é a multiplicação de dois números inteiros e ímpares. Ora, esta multiplicação é um número ímpar, inteiro, pelo que gera outro Masculino Discreto. Fica, portanto, demonstrado o fecho da operação.

Comutatividade: A multiplicação é uma operação comutativa, isto é, a ordem pela qual os elementos se relacionam não é relevante, e obtém o mesmo resultado. Nota: é também aqui que mais certeza ganhamos quanto à natureza sexual desta relação.

Existência de elemento neutro: Esse número é o Masculino Discreto 1. Multiplicar um número por 1 é igual a obter o mesmo elemento original. O elemento 1 é, portanto, um elemento Masculino Discreto neutro, isto é, sem qualquer atributo que o distinga, que ao se relacionar com o outro nivela por baixo. Demonstra-se, pois, esta existência.

Os três axiomas são respeitados, assim demonstrando o Teorema 1.

Corolários e interpretação.

Dado que está demonstrado que os Masculinos Discretos são um semi-grupo Monóide, podemos observar na natureza que os seus elementos andam geralmente em pequenos grupos, não se relacionam com elementos que não sejam MD. Observamos ainda que há elementos que neutralizam todos os outros MD em seu redor, são os chamados Macho Alfa, extremamente discretos.

a-list-celebreties-still-in-the-closetFoto: Lars Leetaru for Variety

 

Conservação em armário.

Um outro aspeto dos MDs é o facto de estarem isolados entre si, isto é, entre dois MDs existe sempre uma infinidade de outros humanos e nenhum contacto físico em público. E de forma a passar de um MD para outro MD é necessário um salto em unidades inteiras ou discretas. Este isolamento dos seus pares acontece porque os MDs estão selados do mundo que os rodeia, por intermédio de um operador matemático muito distinto, chamado armário. O armário é o que mantém o MD seguro e livre para não se relacionar com Masculinos Contínuos (os chamados bichas) ou mesmo Femininos. Esta capacidade é um forte indício da sua superioridade.

 

Promiscuidade dos Masculinos Contínuos.

Em oposição ao distinto isolamento dos MDs, os Masculinos Contínuos são altamente promíscuos nas suas relações. O Teorema de Bolzano demonstra que nos relacionamentos entre dois Masculinos Contínuos, sendo o relacionamento multiplicativo uma função contínua, existe uma infinidade de outros humanos, o que demonstra a propensão para a leviandade, uma característica de inferioridade sobejamente conhecida, consubstanciada por relações fugazes e, até, orgias. Tal facto justifica alcunhas atribuídas a Masculinos Contínuos tais como ‘puta’, ‘vaca’, ‘galdéria’ e outras, quase sempre no feminino, sendo a mais usual ‘bicha’.

 

Migrações de estado.

De extrema importância são os raros casos de migração entre um estado de MD e um estado de MC, ou o contrário. Analisemos cada um em separado.

Migração MC para MD

Esta migração é muito rara, visto que existem registos históricos (as redes sociais são um agente muito protetor da capacidade de conservação dos MDs) que podem comprometer os relacionamentos futuros. Este processo de masculinização exige que o MC se submeta a uma mutilação muito exigente. Será necessário anular completamente a sua parte não inteira discreta, nomeadamente trejeitos, tendências para beijar publicamente outros elementos masculinos, linguagem corporal, roupas coloridas e demais aparência extravagante e histriónica. Faz-se notar que por vezes este arredondamento funciona melhor em espaço público, uma vez que em privado os MD costumam abrir um pouco o armário e dar-se a algumas liberdades, ditas abichanadas, num processo designado por soltar a franga. Este processo matemático pode ser também designado por arredondamento por defeito, pois todos os defeitos são eliminados para resultar num Masculino Discreto purificado.

Migração MD para MC

Ainda menos frequente, esta migração acontece nos raríssimos casos de rompimento ou quebra definitiva do armário. Ocorre por um descuido ou fatalidade quando a personalidade de um MD se expande e passa a não conseguir ficar contida no armário. Um exemplo de tal fatalidade é quando resolve usar, uma vez que seja, uma mala a tiracolo ou resolve dançar música pop numa festa, dando aso à chama interior demoníaca. Por violar os axiomas de um semi-grupo Monóide, ao apresentar, por insignificante que seja, uma parte não inteira publicamente, o MD é imediatamente afastado dos restantes Monóides, sendo excluído do grupo social.

 

Conclusão.

Dadas as evidências descritas no texto, conclui-se que os Masculinos Discretos são francamente superiores, no que toca aos valores milenares e universais da humanidade (distinção, seriedade sexual, aparência e companheirismo, entre outros), aos Masculinos Contínuos. Dada a extensão do texto não é possível analisar a relação com os elementos Femininos, embora isso possa vir a ser analisado em outros textos.

 

Epílogo.

Este texto é, evidentemente, uma sátira sobre os Masculinos Discretos, uma parte dos homens gay que se esforça por vincar as diferenças com os gays mais livres, assumidos publicamente ou simplesmente mais influenciados por outros estereótipos. É muito simplista por não usar o método científico de forma exaustiva, obviamente, mas pretende despertar a consciência de que não há, efetivamente, qualquer superioridade em se ser discreto, pelo contrário, no meu ponto de vista. Em última análise o Masculino Discreto é uma fachada ou capa pública, reproduzindo um estereótipo masculinizante hegemónico, um padrão grandemente responsável pela própria estigmatização das formas mais ‘femininas’ de expressão. Ora, o que realmente importa é cada ser humano expressar-se da forma como se sente e extravasar as suas emoções, sem limites, nem policiamento. O pior deles, é o auto-policiamento, capaz de mutilar a personalidade, sem que o próprio consiga viver feliz e sem culpa.

É comum ouvir-se de alguns MD frases como “é por causa das bichas que dão mau nome à classe” ou então “não vou a marchas lgbt porque aquilo é um bando de loucas e depois pensam que somos todos assim”. Ora estes tesourinhos deprimentes são amplamente homofóbicos e validam a tal heteronormatividade sexista que valoriza o masculino e inferioriza o feminino.

Além disso, para lá da orientação sexual, as fobias nestes casos dirigem-se também e, talvez sobretudo, à expressão de género. Deste ponto de vista, uma das razões apontadas para o distanciamento (também motivado pelo receio de serem ‘confundidos’) é de que ‘as bichas’ estão a reproduzir um papel estereotipado que não é o seu, isto é, são acusad@s de não serem verdadeir@s. Eu desafio então qualquer masculino discreto a justificar-me a sua expressão de género como verdadeira ou genuína. Não há simplesmente expressões de género genuínas, pois somos sempre fruto de um processo cultural longuíssimo. Ou, se quisermos, todas são genuínas, porque não são induzidas diretamente do exterior (embora o sejam, todas elas, induzidas indiretamente). E há questões políticas de statement (declarativas, portanto) envolvidas. Estas últimas desempenham um papel político muito importante na luta pela afirmação e pelos direitos da população lgbti. É por esta razão que exemplos como a cantora austríaca Conchita Wurst são tão importantes, pela sua forte componente disruptiva. Neste caso, há uma expressão de género não binária e que desafia tanto os padrões masculinos como os femininos.

Para finalizar, a expressão de género é mais uma das variáveis da personalidade do ser humano que tem sido espartilhada e condicionada desde sempre e que é necessário respeitar, como sendo livre e diversa. Pela igualdade do direito à expressão é também uma luta pela qual há muito que fazer.

 

Fontes

Foto de capa: Brittney Borowski