Música com Q: PJ Harvey

Num Inverno de 1995, chego a casa – de um dia provavelmente traumático – e faço o que qualquer adolescente fazia naquela altura: ligo a televisão na MTV. Para os que já não experienciaram tal coisa, naquela época a MTV era uma referência para os e as jovens que pretendiam descobrir tanto as vertentes mais populares como as mais experimentais da música contemporânea. Eis que (muito provavelmente) no saudoso ‘Alternative Nation‘ surge uma figura feminina absolutamente encantória que vim a saber ser PJ Harvey. Embrulhada num vestido vermelho que lhe escondia a silhueta magra, lábios enormes escarlate e uma carregada sombra de olhos azul turquesa. Enquanto nos fixava impiedosamente, contorcia-se numa dança exótica enquanto cantava sobre a morte de uma criança às mãos da sua mãe, num desvario de demência. Era uma visão tremenda que certamente mudou de forma radical como olhava as mulheres.

Já abordámos a veneração tremenda que os homens gay têm pelas suas divas e PJ Harvey cedo se tornou numa essencial para mim. Talvez não seja a mais óbvia das escolhas, mas detinha (e detém) nela um poder absolutamente transfigurante e subversivo. Mais tarde descobri que, à semelhança de outras figuras femininas da música alternativa do início dos anos 90 como Björk e Tori Amos, tinha um grande culto dentro da comunidade LGBT. Estas artistas não questionavam somente o papel da mulher numa sociedade ainda extremamente patriarcal e opressora de forma pacífica e moderada. Elas pegavam nesses preconceitos bacocos e evisceravam-nos com gritos ferais num ritual de sangue e carne. Era uma nova era de feminismo na qual me revia também graças a elas.

Por isso, quando vejo PJ Harvey a pisar o palco do Coliseu dos Recreios mais de 20 anos depois, é impossível não pensar no seu percurso e tudo aquilo que ela simboliza para tanta gente. E parte do seu legado esteve também ali presente. O punk agressivo e sem desculpas de “Rid of Me” ou o mais indie em “To Bring You My Love” passando pela ruptura do rock nas paisagens oníricas do soberbo “White Chalk” e a inversão do caminho para a música de intervenção política e social que marcam os últimos “Let England Shake” – que lhe valeu mais um Mercury Prize – e “The Hope Six Demolition Project”. E se o anterior era mais virado sobre o papel do Reino Unido no Mundo e dos seus podres que minam aqueles que lá habitam, no novo disco ela muda o pesado e longo hábito de arauto da destruição para um igualmente devastador mas menos introspectivo e com vontade de palmilhar e incendiar o resto do Mundo. Saem do armário as botas altas e a saia curtíssima de latex desinibidamente sensual.

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PJ Harvey no Coliseu dos Recreios

Totalmente vestida de negro, também com um colete e uma coroa de penas de corvo, fez-se acompanhar de uma banda que incluem colaboradores habituais como John Parish e Mick Harvey dos Bad Seeds. Entram em palco com os compassos fúnebres de tambor que marcam os primeiros acordes de “Chain of Keys” e cedo nos apercebemos que este não se trata de mais um espectáculo. A encenação da música de intervenção que agora a caracteriza é poderosa e acutilante, e traz à baila um conjunto de questões tão fulcrais como a situação hedionda dos refugiados e da xenofobia que tem levantado, da economia ocidental a matar aqueles que a ajudaram a construir, entre muitos outros assuntos da actualidade. Existe neste grupo de pessoas que se encontram em digressão mundial uma semelhança não acidental com os grupos de trovadores que passeavam pelas várias povoações na época da Idade Média a denunciar os crimes contra o povo de forma extremamente inteligente e subversiva em formato lírico.

E a mulher que pisava o palco era a mesma que me tinha fascinado vinte anos antes e fê-lo igualmente. Mas de forma totalmente díspar. O golpe da navalha é agora mais profundo e questiona a própria visão que tenho da Humanidade e do meu (se calhar não tão) insignificante papel na História da mesma. Exalava a mesma voz marcante e penetrante, mais evoluída e ainda mais reverberante, e nela ardia o mesmo Fogo de renovação, a mesma vontade de mudar o Mundo, que vê decrépito e inóspito. Como ela existem poucas artis hoje. De verdadeira intervenção e ativismo tanto político como social. Não é (tão) atraente um cantor falar de outra coisa senão o Amor e o fim d’Ele. Mas por estes motivos e tantos outros que PJ Harvey será sempre uma rebelde e uma figura sem igual na nossa cultura. E por isso merece e merecerá SEMPRE toda a veneração.

3 comentários

  1. Lembro-me tão bem dessa sensação de ver e ouvir o “rid of me” e pensar uau, uau, uau. O teu texto levou-me para aí. Há 23 anos tinha 16 anos e aquela figura era de facto maior. No mesmo ano em que aparece a Bjork, com o seu Debut encantado. Fizeram tanto por mim de facto essas miúdas mais velhas. Agora sinto um pouco de nostalgia porque as deixei pelo caminho. Abandonei-as por outras e deixaram de encantar-me. Mas, lá está, ao ler o teu texto, sinto a perda dessa adolescente atormentada que em poucos anos decidiu abdicar da dureza da música celebrando antes a sua capacidade de me fazer dançar e viajar.
    Porra, Nuno, agora vou ter de ouvir um bocado da Polly Jean e estava tão bem a ouvir a Hindi Zahra. 😉

  2. E fazes tu muito bem. Eu acompanho-a desde aí e apesar de ter perdido aquela dureza feral tem agora outro tipo de rebeldia que me faz considerar o papel que nós temos naquilo que nos rodeia. Acho-a tão tremenda agora como no início. Mas claro que de vez em quando sabe mesmo bem ouvir um Rid of Me e um To Bring You My Love 🙂

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