Estados híbridos

Vem cá.” Diz Floriane a Marie, perante a angústia ansiosa desta. Marie aproxima-se. Beijam-se. Um beijo de um desejo há muito contido.

Vês como foi fácil.”, remata Floriane. Afastam-se. Dificilmente voltarão a estar tão próximas.

É assim que se concretiza o maior desejo de Marie ao longo de todo o filme, um beijo em constante antecipação. É também assim que vê destruída a sua esperança de amor, reduzida a mais uma das pessoas que quer algo de Floriane e que ela cede porque é o que esperam dela, algo na sua cara como diz numa conversa anterior.

Naissance des pieuvres”,”Water lilies” no inglês, “Lírios de água” em português diria, é o nome deste filme francês de 2007, em que três adolescentes mergulham e emergem sincopadamente nos seus desejos e medos, pouco parando para respirar. A imagem não é acidental. É no cenário da natação sincronizada que se desenha o filme. Natação, dança, ginástica. Força, resistência, flexibilidade. É na exigência e no drama deste desporto híbrido que encontramos a coreografia destas três miúdas, tão perdidas como outra adolescente qualquer. Uma, Marie, a descobrir-se lésbica, envergonhada, ingénua e perdida. Outra, Floriane, agrilhoada à visão sexual que têm dela, objeto constante, manipuladora e perdida. E outra ainda, Anne, “desadequada” fisicamente, com má auto-perceção, carente e perdida. Todas elas expostas à esmagadora pressão de ser mulher nas suas variantes, todas elas fora da norma. A fufa, a puta, a gorda.

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O grande mistério da adolescência é atravessá-la. Cada vez me convenço mais disso. Quando olho para esses meus anos de asfixia, de arrogância, de incerteza, de desorientação, de deslumbramento, de inconsciência e de dor, fico sempre surpreendida por tê-los atravessado. Não haverá fase da vida em que mais pres@s estamos ao tempo e à condição presente, em permanente ansiedade de outra coisa que nunca chega. E depois passa, como tod@s pareciam ter indicado que assim seria. Mas não adianta avisar, porque na adolescência não há distância. Tudo é aqui.

Na natação sincronizada, há um necessário controlo da respiração, do corpo, do sorriso. Para a beleza e harmonia dos movimentos sincronizados, exige-se a permanente contagem, a força das pernas e o domínio das águas. O contraste entre o que se vê, fora, e o que remexe, dentro. É nesse híbrido, nessa alteridade, que o filme assenta. E é também aí que reside uma das chaves da adolescência, nessa permanente luta e equilíbrio a cada dia. O saber não respirar para eventualmente depois respirar tudo de uma vez.

E são isto estas três miúdas, expostas que estão a um modelo de feminino, a um ideal de conformidade que nenhuma alguma vez alcançará. Felizmente – podemos dizer agora adult@s. Mas, neste filme, não há nenhuma pessoa adulta, nenhuma mãe, nenhum pai, nenhum/a professor/a. Isto não é do mundo d@s adult@s. Nunca será.

Eu fui uma adolescente em crise porque descobri que era lésbica e permaneci em silêncio durante muitos anos, demasiados anos em silêncio. Acho que desenhei dentro de mim cicatrizes que mascararam as próprias feridas que nunca quis fazer, substituindo-as por pontos imaginários. Porque também é isso (ou sobretudo isso) a adolescência. Esse excesso de sentir que não gera nada e que se alastra em tudo.

Depois cresci. A vida é sempre melhor. Mas quando vi que as minhas crianças iam deixar de sê-lo e passar também por aí, por esse mundo tão cheio e imenso de coisas enormes que se atravessam, pela adolescência, tive medo. Um medo que a solidão os invadisse e que não soubessem para onde afinal pudessem nadar ou respirar. Um medo que o silêncio os tomasse com demasiada e pesada força.

Tenho vindo a descobrir, tal como no filme, que esse mundo não é para adult@s. E que eu, tal como os meus pais e outr@s que estavam à minha volta, só preciso estar lá à beira, atenta a ver, às vezes a assustar-me e a perder a paciência por haver uma parede invisível entre nós, que me deixa inevitavelmente de fora.

Tal como aquelas miúdas do filme, há um espaço em que o mergulho é só delas.

E eu, que gostaria de escrever sobre papéis de género, descoberta da sexualidade e afins, perdi-me na adolescência, que continua a ser um dos temas mais fascinantes que são explorados no cinema. Porque num olhar desconcertado, capaz de todos os horrores e de todas as maravilhas, há sempre um lugar que é nosso. Porque a antecipação da descoberta é uma das mais belas sensações que podem despertar em nós. Ser tudo sem nada.

Como o beijo que finalmente chega. Mesmo sendo o fim do amor. É o beijo que finalmente se beija.

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3 comentários

  1. Bonito testemunho Ana. Fiquei curioso em ver o filme. É impressionante como a adolescência é uma idade que marca tanto. E marca … para sempre. 🙂

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