Entrevista A Filipe V. Branco: “A minha avó daria uma grande lição a muita gente”

O Filipe V. Branco é um promissor autor português que tem vindo a desenvolver o seu gosto pela escrita e com esta a explorar, também mas não só, a temática LGBTI de forma a dar visibilidade à vida de muitos e muitas jovens. Cerca de um ano após a nossa primeira entrevista aquando do lançamento do seu livro de estreia “O Dia Em Que Nasci”, voltámos à conversa com o Filipe que, para além de nos apresentar o seu novo projecto, “Deixa-Me Ser“, nos partilha a importância que teve em si mesmo o seu coming out e o efeito que teve na sua família, amigos e amigas:

Há um ano falámos sobre o teu primeiro livro, O Dia Em Que Nasci, um romance ficcional sobre prisões pessoais e a libertação do jovem Tomé e já na altura tinha ficado prometido um livro auto-biográfico sobre o teu ‘coming out’. Passado esse ano aqui está o livro, Deixa-Me Ser, e, como prometido, escreves na primeira pessoa. O que te motivou a escrever desta forma mais íntima?

A maior motivação para o escrever assim foi mesmo sentir que seria necessário alguém fazê-lo de uma forma muito directa e íntima para ter o impacto que desejava. Já participei em muitas acções relacionadas com o preconceito, racismo, etc. E em todas elas senti sempre que as pessoas começavam sempre a dar mais atenção quando alguém tornava o assunto mais pessoal, mais humano, do que quando nos baseávamos só em números, estatísticas ou histórias não tão próximas. E atenção que tudo isto é importante para cada caso, mas o que percebi foi que no caso específico da homofobia tinha muito mais impacto eu dizer “Sim, passei por isto e foi assim…” do que simplesmente apresentar conceitos ou outros exemplos.

Sei que sacrifiquei muito da minha intimidade ao fazê-lo, mas o que queria era deixar um testemunho o mais real possível e assim ajudar a mudar as ideias erradas de algumas pessoas.

A questão da proximidade e da identificação são, portanto, essenciais para contar uma boa história. Que conta a tua história neste livro?

A minha história começa com um rapaz que decide morrer por não aguentar a pressão social e familiar da homofobia e por não querer ser assim… diferente. Bem, esse rapaz sou eu, mas podia ser outra pessoa qualquer. No meu caso todos sabem que há um final feliz, por isso o livro depois desenvolve até esse ponto em que consegui a plena aceitação, tanto minha como daqueles que me rodeiam. Aqui falo de suicídio de uma forma muito directa, mas também da demência, bullying

E há um assunto muito forte que é desenvolvido a meio, mas que prefiro guardar como surpresa para quem ler. Arrisco a dizer que dentro da comunidade LGBTI há muitas pessoas que não querem falar disso, mas é algo que afecta muitos de nós… e não podia deixar de aproveitar para o escrever, porque foi algo que vivi também. O texto que introduz esse tema é um dos meus favoritos do livro, mas também um dos mais tristes… e chocantes para quem não está à espera.

Numa parte do livro pode-se ler, mãe para filho: “Agora vamos sair de casa, sem fazer muito barulho para ninguém se aperceber na rua, e vais para o hospital”. Parece ser história comum a reversão dos valores familiares no que toca a estes problemas, em que a expectativa e a imagem social sobrepõem-se à saúde física e mental que o núcleo familiar deve promover. Como explicas isso?

Esta é uma das questões mais pertinentes que já me fizeram. E infelizmente penso que a imagem social e o medo daquilo que os outros vão comentar sobrepõem-se sempre ao bem estar mais íntimo do núcleo familiar. No meu caso, por viver num meio pequeno, isso era elevado a níveis ainda mais prejudiciais. Imagina alguém que já está instável mentalmente… e passar a ouvir constantemente que tem que esconder aquilo que está a viver. Peço desculpa por ir buscar um exemplo da Disney, mas o filme Frozen (na versão portuguesa) tem uns versos que dizem “Não vão entrar, não podem ver. (…) Esconder, conter ou saberão”, numa canção em que a protagonista Elsa canta e se lamenta sobre as amarras que os seus próprios pais lhe impuseram… para a proteger (porque ela também era diferente da maioria). Escusado será mencionar o grau de identificação que senti aí. É óbvio que o que queria era só ser eu próprio e não me importar com o resto, mas à minha volta a família vivia com receio do que as outras pessoas iriam pensar. E o exemplo deste filme é perfeito para explicar tudo o que se passa cá dentro numa situação dessas. No fundo tive de ser eu a ensinar aos meus pais que ninguém tinha nada a dizer sobre a minha vida. Eu não tinha que esconder ou conter o que era.

É curioso que percebemos juntos que a maior parte das pessoas à nossa volta acabou até por apoiar-me em tudo isto (e até no que toca a este livro biográfico). Só mostra que muitos medos são infundados e que há sempre pessoas muito boas ao redor. E são essas que interessam. “Já passou”… e os que me apoiaram e apoiam terão o meu agradecimento sempre. Gostava que outros pais, familiares, etc, lessem estas palavras e tirassem delas alguma reflexão que os ajude a descomplicar algum caso semelhante…

Talvez até impulsionado precisamente por essa complicação familiar, muitos e muitas jovens procuram ajuda na internet. E a verdade é que é esse o seu primeiro contacto directo e assumido com jovens LGBTI. No teu caso foi o fórum da rede ex aequo onde procuraste a desejada “igualdade, nem mais, nem menos”. Que importância teve para ti este tipo de espaços?

Teve uma importância tremenda. E foi exactamente por isso que quis referir essas descobertas no livro. O fórum da rede ex aequo então foi mesmo um ponto de partida para muitas respostas e para me compreender a mim mesmo, enquanto compreendia outros jovens como eu.

Hoje em dia é muito mais fácil encontrar boa informação LGBTI espalhada pela internet, mas falo de uma altura, de há uns 10 anos, em que esta ainda era muito escassa. Assim, estes sites de partilha de experiências, mesmo de forma anónima, foram impulsionadores de muita coragem em mim.

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O livro parece espelhar a ideia de que na realidade não existe necessariamente um conflito de gerações – quantas vezes usada como desculpa para certos comportamentos – e que pessoas, mesmo de maior idade, podem ser fortes aliadas e também elas impulsionadoras dessa coragem que falas. Foi isso que aconteceu com a tua avó?

Completamente. A minha avó é a prova de que até esse conflito de gerações não é tão certo quanto isso. No caso dela houve apenas aceitação imediata, nem sequer pesou o facto de, naturalmente, ter mais idade do que eu. E, sem querer revelar muito, posso dizer que é dela a autoria de uma frase que uso mesmo nas páginas finais do livro e que resume perfeitamente o facto de ter aceite tudo o que eu era sem sequer questionar. Ela justificou-o com o facto de por mim ter só amor. E daí veio toda a coragem e força que me passou… e de que maneira! A minha avó daria uma grande lição a muita gente…

Na lista de dedicatórias no livro reparei que deixaste a do teu pai para o fim. Qual o significado dessa decisão que, imagino, simbólica?

Sim, foi propositado. Este livro é dedicado sobretudo ao meu pai e não existiria se não fosse por ele, pelos piores e melhores motivos. Daí ter deixado a dedicatória dele para o fim e de ter escrito “Para o meu pai, a personificação da esperança“. É que para mim ele é mesmo isso, a prova viva de que pode sempre haver esperança e de que o pai que não aceita um filho por um motivo destes pode vir a ser o pai que orgulhosamente diz ao mesmo filho, anos mais tarde, que o seu livro tem que ser levado às escolas e dado a ler aos alunos pela mensagem que transmite. Sim, isto aconteceu há uns dias. Ele disse-me isso muito naturalmente, sem sequer ter noção de como me tocou.

É uma belíssima reviravolta e um exemplo para todas as pessoas que possam, nalgum momento, hesitar no abraço a um filho ou filha, amigo ou amiga, LGBTI. O livro relata quase 10 anos de experiências na tua vida. E como viste a vida dos portugueses e portuguesas nessa década no que toca aos direitos e à visibilidade das pessoas LGBTI?

É curioso que no capítulo 3 do livro relato o dia em que foi aprovada a lei que veio permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo em Portugal. Fiz questão de o escrever porque foi uma emoção tremenda na altura ao ver finalmente ser conquistado esse direito e também porque quis de certa forma localizar o livro no tempo e espaço das lutas pelos direitos LGBTI na nossa sociedade (nos tempos que conto).

Nestes anos conquistámos mais direitos, como o da adopção, e é com grande felicidade que vejo que hoje, aos olhos da lei, temos muito mais valor. Isso por outro lado traz-nos mais visibilidade a nível dos média. Não posso também deixar de sublinhar que há cada vez mais sites, como o Escrever Gay, com informação LGBTI de qualidade e diversificada online. Isso também contribui e muito para que deixemos de ser invisíveis aos olhos da sociedade em geral.

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E para ajudar nessa eterna luta contra a invisibilidade das pessoas LGBTI, onde podemos encontrar-te a ti e ao teu livro nos próximos tempos?

Nos próximos meses vou passar por várias cidades. Em Novembro estarei em Lisboa [dia 13, ver acima e conferir toda a informação no evento do Facebook] e Covilhã, com datas ainda por confirmar. Em Dezembro é a vez do Porto, numa acção com o apoio do projecto Tudo Vai Melhorar, da qual revelarei mais detalhes entretanto. Ainda nesse mês vou também a uma escola em Tomar, onde alunos estão já neste momento a realizar um trabalho sobre mim e os meus livros, com foco neste “Deixa-me ser” e nas questões LGBTI que aborda. Esse trabalho será apresentado na escola numa sessão aberta em que vou depois dar o meu testemunho e responder a questões de professores e alunos.

E quando esta entrevista for publicada, terei já passado com apresentações por Leiria e Torres Novas. Não paro e quero ir o mais longe possível. E este é o meu compromisso: farei tudo, mesmo tudo o que estiver ao meu alcance para continuar a lutar pela visibilidade destas causas. Claro que sou movido com a Força de quem me apoia, de quem me dá carinho, amor, e dos leitores que enviam e-mails com comentários absolutamente tocantes sobre a história que escrevi e decidi contar. Por isso aqui fica o meu imenso obrigado a todas essas pessoas que fazem toda esta luta valer a pena.

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Nota: Obrigado ao Filipe pelo contacto e disponibilidade 🙂

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