Trump Triunfante: Diário De Uma Noite Eleitoral

Escrevo depois de ter adormecido no sofá, televisão em canal de informação, portátil com apenas duas janelas abertas – Twitter e ferramenta da Google para seguir os resultados das presidenciais norte-americanas em directo. Passa pouco da meia-noite. O Sawyer volta a adormecer ao meu colo que os seus cinco meses não estão para noitadas. Trump tem a esta hora 55% dos votos contados. Ainda a noite vai no início, bem sei, esta sesta nocturna a dois serviu de balanço para me aguentar o resto da noite. Porque, e falemos em termos globais, esta é facilmente a eleição mais importante dos últimos anos. Mas fulcral agora é mesmo ir dar de comer e passear o cachorro que de pequeno só tem a idade. E por isso saio de casa enquanto o suspeito Pedro Dias é entrevistado antes de se entregar. Noite estranha esta…

Quando chegamos a casa vejo que o José Rodrigo dos Santos irá fazer a noite eleitoral da RTP o que me obriga a mudar de canal, para homofóbico já me basta Trump. Passada a 1 da manhã, vejo que este começa a descer nas votações contabilizadas: 50%. Clinton ascende aos 46%, mas a sua subida continua lenta. Esta vai ser uma longa noite. Na televisão oiço, pela segunda vez, a expressão “casamento gay“, como se isso não fosse uma simplificação discriminatória e como se não fossem antes as pessoas que assim se casam gays e não os casamentos em si. Casamentos são casamentos. Sem adjectivos acessórios. Simples.

Esta é a segunda eleição que sigo esta noite, horas antes – e depois de um processo ainda em evolução que continuará nas próximas semanas – estive na Assembleia Geral da ILGA Portugal que decorreu no Centro LGBT e de onde saiu nova administração a qual integro. Duas eleições para mim importantes no mesmo dia, separadas por algumas horas e alguma dimensão, mas não deixa de ser uma coincidência notável. Um prenúncio de boas-novas? Abro a janela da Google, Clinton mantém os 46%, Trump os 50%. Suspiro interrompido pelo Sawyer que insiste em morder uma garrafa de plástico, o seu brinquedo favorito desde sempre. O Nuno chegou entretanto de um jantar e no sofá vê comigo a emissão.

Não sei se é exigido que nestes acontecimentos haja sempre umas horas de tremendo suspense, mas, passadas as 2 da manhã, surge o receio que Trump possa vencer Clinton. Ela que, com todos os erros e defeitos que possa ter, é inequivocamente um ser humano com qualidades e capacidades de liderança política superiores ao seu principal adversário. Não são emails enviados em servidores desapropriados, são atentados à liberdade da população norte-americana e, por arrasto, do mundo. É a homofobia, a misoginia, o racismo, a xenofobia. São todas estas enormíssimas falhas nos pilares de um ser humano que Trump personifica. E isso, de alguma forma que me escapa ou me impeço de apanhar, é visto como uma mais-valia dele.

Meia hora passada e, de repente, o NYT dá maior probabilidade de vitória a Trump. Pela primeira vez em todo o ano. Confesso-me nervoso, isto está a ir mesmo nesta direcção? A madrugada portuguesa no Twitter, rede social de excelência para a discussão política e jornalística ao vivo, está ao rubro. Clinton pode efectivamente perder para aquela besta. Sem meias palavras. Depois de todo o discurso de ódio, Trump tem a esta hora possibilidade real, esperada até, de se tornar no homem mais poderoso do mundo. O que significa isso quando esse homem trata a maioria da população – mulheres, LGBTI, e todos aquel@s que não sejam caucasian@s e católic@s – com desdém e ódio? Que mundo se decide esta noite? Que contraponto terá, por exemplo, Putin amanhã de manhã? Quem são estes milhões de pessoas a votar naquele homem? Revêem-se naquilo que diz, naquilo que cospe, contra tudo e, especialmente, contra todas? Não consigo, não quero, não posso compreender.

Três da madrugada, namorado deitado. Sawyer também mas a meu lado, alheio ao que se passa do outro lado do atlântico. Três tigelas, uns passeios e umas festas por dia é com isso que ele se contenta. Quem Trump acha que é para lhe tirar o sono profundo no sofá? Esta noite está a ter o efeito de o início de temporada da The Walking Dead não me parecer, por comparação, tão chocante. E muito menos violento. A agulha do NYT tende agora para os 73% favoráveis à vitória de Trump. O que é um olho pendurado por um fio quando temos isto nos nossos ecrãs?

33.989.397 vs 32.544.875 às 3:28. Alguém recorda que foi nesta data, dia 9 de Novembro, que se celebrou a queda do muro de Berlim. Não deixa de ser irónico que, 27 anos passados, outros muros estejam a ser erguidos, porque, ganhe ou não Trump, o quadro político norte-americano vai mudar esta noite. Clinton Presidente poderá ter que enfrentar um Senado e Câmara de Representantes dominados por republicanos. A próxima década adivinha-se conservadora na maior potência do mundo, com ou sem Hillary.

Minutos depois o NYT continua a aumentar a vantagem de vitória de Trump, 88%. A sua vitória é quase certa. Desanimado, cansado, oito anos depois de Obama, assim me deparo com a nova – provável – realidade. Depois dos anos de Bush Jr., existiu realmente uma lufada de ar fresco na política internacional. Hoje poderia – poderá? – ser um novo dia para quebrar antigas barreiras e colocar pela primeira vez uma mulher a liderar o país mais poderoso do mundo. Que mensagem têm estes resultados àquelas pessoas que viram – vêem? – em Clinton o exemplo que precisavam – precisam? Um exemplo de emancipação, de liderança e de capacidade? Por oposição ao quê? A confirmar-se a vitória daquele homem somos todos e todas nós que perdemos. Noite sombria esta, potencialmente um reforço brutal de um movimento que leva o mundo para novos extremos. E a liberdade, a diversidade e a igualdade poderão ter hoje uma noite de luto.

Quatro da manhã (bem bom!) e a glorificação da ignorância continua a dar os seus perigosos resultados: Clinton perde o importante estado da Flórida. Olho para as teclas do computador, apetece-me encerrá-lo, apetece-me parar. Ao meu lado o Sawyer continua a dormir de barriga para cima, completamente descansado. Faço-lhe uma festa na barriga e espreguiça-se. Uma parte de mim, animalesca talvez, inveja-o. Olho para os tweets e vejo que, vá lá, a Califórnia não foi surpresa e deu a vitória nesse estado a Clinton fazendo-a subir timidamente aos 47% dos votos contabilizados. O outro nos 49.

Trump faz o já mencionado Bush Jr. parecer um forte candidato, são os extremos a incharem. E depois de Obama, Trump parece ter conseguido canalizar o ódio ressentido daqueles e daquelas que, nos últimos oito anos, viram o seu país ser liderado por uma figura ímpar e progressista. Essa panela parece ter rebentado hoje. Na cara de todos aqueles e aquelas que, estupefactos, lutaram por um país e um mundo mais livres. As pessoas não se transformaram em sexistas, homofóbicas ou racistas agora, foi uma tensão latente que, impulsionada por um homem sem escrúpulos, veio ao de cima nestas eleições. O ser humano tem destas coisas, para o bem e para o mal, é um ser social e, assim sendo, um ser influenciado pelos e pelas suas líderes. Para o bem e para o mal, para o bem e para.o.mal.

4h36, Clinton perde em Iowa e Wisconsin, já não tem hipóteses de ganhar. Mr. President Trump it is. A televisão não desiste em vender o sonho. O Sawyer não desiste de perseguir, patada atrás de patada, igualmente o seu sonho. Deito-me e dou um abraço apertado ao Nuno que resmunga mas se aproxima de imediato. É isto. Aproximemo-nos, agora mais que nunca, é isto.

Nota: Pelas 7h35 Trump foi, efectivamente, eleito 45º Presidente dos Estados Unidos da América.

4 comentários

  1. Pedro … este texto está brutal. Vivi a mesma noite com uma intensidade semelhante e uma incredulidade galopante. É mesmo isso … temos que nos unir e lutar lutar lutar.

  2. Trump pode ter todos os defeitos que exibe e mais os que lhe são apontados pela oposição Clinton, contudo ele foca-se, ainda que da mais desastrada das maneiras, nos grandes problemas que afligem o mundo e que por covardia e por amor ao politicamente correto poucos, mesmo muito poucos, são capazes de abordar e, ainda menos de contrariar as tendências e os exageros que vão assumindo e de que nos queixamos com as proverbiais lamentações sobre o mundo em que vivemos e a dificuldade que temos em compreender e controlar devido a toda a casta de ‘virtudes’ que nos fazem crer que tudo, em todas as opções individuais ou grupais devem der colectivamente aceitáveis ainda que em detrimento do institucional ou do que diz respeito à essência do ser pessoa, ainda quando apresentado sob a forma de hipócritas humanismos. Trump, por formação, prefere a Economia à Finança, o diálogo à guerra, por mais proveitosa que aos olhos de uma ‘elite’ americana ele seja vista sempre como a salvação da economia americana, economia que gera o apogeu financeiro que permite o cultivo da industria de guerra. Dizer que Trump não tem formação política após ter glorificado Reagan, um actor de segunda em filmes de cowboys, chega a ser ridículo mesmo para americano. O homem passou por West Point, cursou uma das grandes universidades americanas, cultivou relações comerciais com todos os países do mundo por mais de cinco décadas, tem uma fortuna que lhe permitiria viver sem se meter na complicada e viciada política americana.Veremos como ele reage perante as ameaças da península coreana. O lógico, embora indesejável, seria a China apoiar a península coreana em convivência pacifica como se de dois estados se tratasse. Seria bom para os States e para o mundo, especialmente para o Japão, a menos que, o que é improvável por questões de mercado, a China viesse a ameaçar os Estados Unidos. O que provoca o receio dos States e seus aliados pós-guerra é o receio de que a Russia se alie à China e, aí sim, o Pacifico ficaria a ferro e fogo. Daí o muito que faz os americanos suspirarem pela guerra fria… e não só. Não creio que H. Clinton trouxesse paz ao mundo. Os Democratas têm desencadeado guerras desde o Vietnam ao Iraque, passando por uma série de intervenções em vários países e sempre como apoio dos Republicanos por motivos que são por demais conhecidos. Trump sai de um Movimento que não nem uma coisa nem outra. A ideia de Trump de que cada país trate da sua defesa é pelo menos um modo de circunscrever os conflitos em vez de os ‘globalizar’. É bom que a haver guerra. o que permita Deus que não aconteça que seja longe da Europa e fora do Atlântico. A Europa já sofreu enormes e sucessivas demolições. É bom que os povos selembrem disso.

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