Fobias Internalizadas e Fetiche

Abusando do significado das palavras – tentando escrever de uma forma directa e simples – fazer uma transição social de género é um despertar para a consciencialização de um conjunto de fobias internalizadas presentes na maioria das pessoas que nos rodeiam. Até mesmo em pessoas que aparentemente não falam de fobias (em torno de identidades e orientação sexual ou relacional) como um conceito presente nas suas vidas.

Quando se move de um registo social masculino para um registo social feminino (e/ou para um registo social não-binário) entende-se as dificuldades que surgem através de linguagem verbal, mas essencialmente corporal e estas últimas são muito evidentes nos detalhes e na forma como são expressas.

Estes comportamentos demonstram-se dependendo do contexto em que estamos inseridos, desde os círculos de amigos, à escola ou ao meio profissional. Passando eu por vários coming outs de natureza diferente notei estas formas de fobia internalizada em modelos diferentes. Mas queria incidir no momento em que me afirmei enquanto pessoa trans.
Deste modo, é importante desconstruir a linguagem que me passou a ser transmitida a partir do momento em que sou reconhecida com um nome feminino e sou lida fisicamente como um rapaz. Por exemplo, um simples cumprimento, por mais bem intencionada que seja a pessoa pode tornar-se num pesadelo para ela, nomeadamente se falarmos do típico homem cis hetero. Esta acção mete em questão a sua masculinidade e forma uma aparente dificuldade em dar um beijo. É muito visível a tensão que este gesto gera, muitas vezes acabando num simples aceno. Outros sinais evidentes como evitar olhar nos olhos quando se está maquilhada (um misto de fobia com chacota), um olhar para o lado quando se traz um top ou um olhar para o chão quando se traz uma saia. Por outro lado, e aparte desde desconforto, as fobias internalizadas continuam a expressar-se através do sexismo, do insulto banalizado e da deformação da realidade que é vivida pelas pessoas Trans.

Estas fobias internalizadas, estes desconfortos permanentes têm um lado perverso, um lado que ataca de uma forma cruel uma comunidade já tão estigmatizada como a comunidade Trans. Falamos do fetiche e da objetificação sexual destes corpos e identidades. É um problema transversal e um problema de uma estrutura social mono-hetero-cis-normativa.
Esta realidade começou a ser-me muito próxima depois de ter assumido publicamente a minha identidade. Porém, o conhecimento do público em geral sobre esta temática passa muito pelo estereótipo do trabalho e da exploração sexual, o que perpetua continuamente o estigma desta população.
Contudo, este problema não se reflecte apenas nas estruturas sociais, no preconceito, mas principalmente nas relações próximas e, nomeadamente íntimas. Esta situação obriga a uma gestão contínua das expectativas que são criadas e dos sinais que possam ser traduzidos em fobias ou, no seu lado perverso, fetiche. O facto de se ter uma identidade que é traduzida estruturalmente nestes moldes, faz equacionar todo o modo como olhamos para as pessoas e a forma como elas se relacionam connosco.
Este fetichismo parte, muitas vezes, da impossibilidade real de demonstrar que se pode trazer prazer sexual de determinada forma por ser socialmente condenável. Assim, os corpos e identidades trans tornam-se um alvo fácil para alimentar este tipo de situações e abusos na intimidade para os quais algumas pessoas não têm capacidade exprimir desejo abertamente. É frequente e de conhecimento público a quantidade de pessoas hetero (nomeadamente homens cis) que procuram serviços sexuais a raparigas Trans pelo facto de reduzir a sua culpabilidade comparativamente a estar com um outro homem cis. Serve como exemplo as inúmeras conversas que começam exactamente pelo questionamento da existência de um pénis. Serve como exemplo a curiosidade mórbida que a generalidade da população tem pelas operações que pessoas Trans querem ou não fazer.

Ser desejada não deveria ser um problema, mas a dificuldade surge quando nos tornamos um objecto de desejo pela nossa qualidade enquanto pessoas Trans e, principalmente, quando dentro dos critérios estão argumentos sobre a passibilidade. Serve a questão de retórica sobre o real desejo destas pessoas? De facto, pelo menos na minha experiência pessoal, a minha feminilidade é desejada ao mesmo tempo que o meu pénis é desejado. É neste contexto que, muitas vezes, as primeiras perguntas que nos são proferidas relacionam-se puramente com o seu genital e o seu uso.

Poderia enumerar muitos exemplos de fobias internalizadas que se depreendem deste desejo fetichista, porém acho que será fácil chegar lá por poucas palavras. Basta pensar na sua hipersexualização, do significado social que tem e o estigma associado ao trabalho sexual.

Por Dani Bento

Sou engenheira de software, formada em astronomia e astrofísica, blogger e activista queer. Mulher, Trans, Não-Binária, Pansexual, Anarca Relacional (Poliamorosa), Anarco/Trans-Feminista e Radical - no sentido da discussão da causa, aprecio descontruir para um futuro mais justo para todas as pessoas. Qualquer opinião é expressa a título individual.

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