Música com Q: Gisela João

Ai m’lher, a bicheza veio toda para te ver“. Afirmação proferida por Gisela João enquanto parafraseava um amigo, parte de um casal homossexual, num concerto seu, que lhe abriu os olhos para uma realidade que até ali não tinha dado muita importância. Para ela era indiferente: “como é que se pode discriminar alguém por ter uma orientação sexual diferente da dela“. Mas foi percebendo que o percurso daquelas e outras pessoas estigmatizadas por Amar era “foda“. E até podia ser “crucificada por alguns” por ter aquele discurso mas não queria saber. Todo este episódio é relatado em pleno palco do Lux, na noite de apresentação de Nua, o segundo tão aguardado disco da fadista. Introduzia o single que não é single, que músicas preferidas “cada um escolhe a sua”, o onírico e fatídico Labirinto Ou Não Foi Nada. O video acompanha a iconográfica Deborah Kristal – que também estava no meio do público, entre o “DeusCamané, Fafá de Belém e outros notáveis – a procurar uma saída do túnel imerso em trevas para um sítio que é casa e lhe é permitido lamentar um Amor que não o foi. Para ela é o palco. Para Gisela também.

A primeira vez que vi e ouvi Gisela João ao vivo, tinha um bilhetinho por ela escrito na cadeira. Na realidade todos os que estavam a assistir àquele maravilho concerto no Centro Cultural de Belém o tinham, mas foi um gesto que fez a diferença. Tal como aquilo que depois vi em palco. Uma Mulher sem medo o Ser: bem cuidada mas sem artifícios, tímida mas confiante, pequena mas gigante. Um vestido curto de sair à noite, cabelo liso e solto de praia e ténis da Adidas. Ou sapatilhas, como ela terá corrigido inúmeras vezes. Isso marcou a diferença da maneira como as pessoas passaram a olhar para ela e para o que é ser fadista. Não são os xailes negros, as roupas pesadas, a presença soturna. São as palavras erguidas por uma voz totalmente mergulhada nelas, e nisso ninguém é mais fadista que Gisela. Sim, mesmo quando leva vestido de lantejoulas, maquilhagem prateada a combinar e saltos laranja que cedo descalça para descobrir os pés que mais tarde encontram as amigas sapatilhas. Para dançar mais à vontade e com mais sorriso. Para falar com as rosas confidentes que devolvem o perfume de um amor perdidos e dos sonhos de outrora, abandonados por algo melhor. Para se aproximar de nós sem pensar no que está a fazer.

O concerto deslumbrante e irrepetível no Lux foi uma surpresa, anunciado três dias antes e esgotado num ápice, tal como o próprio disco que saiu dia 11 de Novembro sem qualquer aviso ou previsão. Temos, finalmente, a nossa Beyoncé. No palco que já pisou com o DJ Nicolas Jaar e os Linda Martini, voltou a pisar sozinha para nos dar Nua. Sem segredos. Do início ao fim. Parando sempre para nos guiar para as músicas e poemas que íamos ouvir e o arrebatamento ser ainda mais forte e inevitável. A garra na voz rouca e texturada – nas quebras, nos soluços, no grito desperado, no sussurro triste – é desnorteante a cada momento. Porque é sempre novo o encantamento e é sempre impiedoso o punhal dilacerante que Nos expõe a carne. Que Lhe expõe a carne. E o sangue. E os ossos.

Tal como o melhor dos Fados que se repete para fazer sobressair a mensagem do poema que o premeia, volto ao início deste testemunho ainda comovido pelo aroma das canções que desfilaram mesmo à beira do Tejo, que já conheceu e fez nascer tantos Fados. Porque é que existe de facto um culto gay – ou de pessoas LGBT, não sejamos redutores – em torno dela? É tão simples. Gisela João é a derradeira transgressora. A derradeira rebelde. A derradeira guerreira. Porque se atreve, com um descaramento despreocupado, a ser ela própria e nada mais. E isso é tudo.

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