A Bruxa, A Mulher, A Bruxa 

Nenhum género dentro do cinema é tão fluído e capaz de nele conter tudo o que a sétima arte pode alcançar como o terror. O medo do desconhecido, externo e internalizado, é o ponto de partida para algumas das descontruções mais violentas e transfigurantes do ser humano. Hoje em dia, no entanto, é rara a obra que é capaz de nos relembrar dessa característica, mas de quando em quando surge algo que nos deixa totalmente perplexos e num estados catatónico.

“A Bruxa” (ou “The VVitch”), filme de estreia do realizador Robert Eggers, é um desses objectos de metamorfose cinematográfica que manipula a percepção da realidade para algo mais interessante e… verdadeiro. Aqui acompanhamos uma família no início do século XVII nos Estados Unidos da América, oriunda de terras de Sua Majestade, que é levada a abandonar a comunidade que habitavam por desavenças religiosas e adoptar um isolamento perigoso. As culturas agrícolas que garantiam a sua subsistência começam a perecer inexplicavelmente, cercando a família num bosque ameaçador, o qual não se atrevem a explorar.

Era o início da cultura das bruxas, seres inquietos e demoníacos que corrompiam aqueles que as rodeavam com a sedução do Diabo. Este Cristianismo do Novo Mundo e a forma como lidava com as bruxas foi já diversas vezes retratado no cinema e na literatura. É menos nela que este “A Bruxa” vai beber, do foclore tradicional e de relatos contemporâneos. Muitas vezes as calamidades naturais eram atribuídas a cultos satânicos, levando a uma perseguição às bruxas.

Bruxas, entenda-se, mulheres. Numa sociedade absolutamente patriarcal era necessário conter a superioridade do feminino sobre o masculino de todas as formas possíveis. E nada mais eficaz do que semear o medo do que vai contra os ensinamentos da religião que exerciam. Qualquer mulher que vivesse contra as normas do que era aceitável era automaticamente categorizada de bruxa e levada a julgamentos que, na maior parte dos casos, levava à sua morte, totalmente justificada aos olhos do patriarcado vigente.

E não há comportamento mais desviante e maior ameaça ao normativo masculino do que uma rapariga a entrar na puberdade. No filme, Thomasin – interpretada de forma surpreendente por Anya Taylor Joy, a filha mais velha de um conjunto de cinco, vive para servir os pais e os irmãos. A miséria da família é exacerbada quando um dia ela, enquanto brincava com o irmão bebé, o vê desaparecer diante dos seus olhos, raptado por ente misterioso de capa vermelha. Sem vontade própria arca com o peso da responsabilidade, a vontade de um pai protector amedrontado e a histeria de uma mãe totalmente perdida na sua devoção. O irmão mais velho, também a desenvolver a sua libido, olha para Thomasin com desejo, enquanto que os gémeos mais novos desconfiam da sua transformação. Cedo todos acreditam que ela é uma bruxa. Talvez A bruxa.

Vou evitar expor mais detalhes do filme porque ele é demasiado importante nos dias de hoje para essa experiência ser estragada. Não é só uma obra cinematográfica absolutamente brilhante, na forma como olha para as personagens imersas no obscurantismo da época – nem é credível que um filme com tamanha virtuosidade técnica seja uma primeira-longa metragem de um realizador. É também um manifesto feminista como não se tem visto em cinema nos últimos anos, uma fábula que metaforiza a emancipação da mulher de forma crua e visceral.

A personagem que se vem a revelar lentamente como principal, inicialmente assustada e com medo de si mesma e do seu poder, aceita o medo que a família sente por ela e torna-o num veículo para a salvação pessoal. O empoderamento feminino que aqui assistimos é violento e mortífero mas, acima de tudo, orgulhoso e sem remorsos. Em 1600 era como tinha de ser. Nos dias de hoje também. Provavelmente mais do que nunca.

A Bruxa está disponível para venda na FNAC e aluguer no Videoclube MEO e NOS