Superioridade moral e liberdade de expressão – a perspectiva de um vegetariano num Mundo omnívoro

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Começou numa aula de Alemão. Tinha de completar a frase «Ich hasse es, wenn» (eu odeio quando…). Estava a sentir-me inspirado e resolvi fazer uma piadinha. Digo: «Não sei se é Testemunha de Jeová, mas… eu odeio quando me batem à porta e são Testemunhas de Jeová. Só vêm chatear». Ri-me.

Silêncio.

«Por acaso até sou.»

A grande maioria de nós já cometeu uma gafe como a de cima, algures na vida. Convencidos de que podemos gozar/brincar/insultar algo sem censura, abrimos a boca e a mente como se fosse uma pequena caixa de Pandora e expelimos os “males” que não ousamos repetir em público. Felizmente, de quando em quando, sai-nos o tiro pela culatra.

Porquê “felizmente”? Porque o ser humano é extremamente casmurro e estúpido e o erro com resposta imediata – feedback para os anglófilos -, é das melhores formas de aprendizagem.

No decorrer do clima atual de crítica ao politicamente correcto e o seu aparente ataque contra a liberdade de expressão e após ter visto a TED Talk brilhante do Michael Specter, achei que seria interessante reflectir um pouco sobre este tema.

Todo este debate interno surgiu meses antes, logo após o episódio que relatei acima. Depois de inúmeras aulas e de várias referências ao meu namorado com uma excelente recepção por parte da minha Professora de Alemão, tinha criado uma imagem obviamente errada dela e de Testemunhas de Jeová.

Na verdade, a imagem que tinha deste grupo religioso era extremamente rudimentar, alternando entre, por um lado, estupefacção e pena por os ver sempre impávidos e serenos ao relento com a sua bancada de panfletos e, por outro lado, raiva por um episódio caricato em que debati ferozmente contra dois indivíduos que insistiram, numa conversão falhada, no pecado do sexo entre homens, especialmente para o homem passivo, porque «quem penetra não é gay» (sic).

Após a minha piadinha ignorante, pedi imediatamente desculpa. Demorei umas boas semanas até voltar a abordar o assunto e, com audácia, a perguntar como é que ela conseguia lidar com uma pessoa que não vivia de acordo com as suas crenças com tanta abertura. Ela respondeu: «A minha religião é algo que é para mim; os outros devem viver como acham melhor».

Tudo isto me levou a pensar: «há algo que eu faça na minha vida que eu ache moralmente certo que vá contra o que pessoas que eu amo fazem?» e «se sim, isso muda a minha opinião dessas pessoas?». Rapidamente destacou-se uma forma de viver que considerava “moralmente superior” e que não impunha a ninguém: o meu regime alimentar.

Sou ovolactovegetariano há quase 5 anos, ou seja, não como carne, peixe e marisco. E, sinceramente, já sofri muito mais discriminação por isto do que pela minha orientação sexual, pelas minhas características físicas/psicológicas ou até por não gostar de futebol num país como Portugal.

Além dos constantes comentários jocosos por não-vegetarianos, há, claro, ainda que contabilizar os enormes conflitos internos dentro desta comunidade. Mesmo só com 0,3% da população portuguesa (único número oficial), há grandes divergências, à semelhança do já abordado neste site, com a população LGBT.

Por exemplo, quando refiro que só sou 100% vegetariano em casa (ou seja, também excluo ovos e lacticínios), mas que, fora de casa, admito comer ovos, leite e derivados, são vários @s vegetarian@s que fazem comentários depreciativos. Entra-se numa guerra de superioridade moral estúpida em que não saem vencedores. Os 100% vegetarian@s que só comem produtos biológicos julgam que os 100% vegetarian@s que não o fazem são inferiores; os dois grupos acham que os ovolactovegetarian@s (e suas variações) são traidor@s e preguiços@s. Os 3 grupos acham que quem come carne, peixe ou marisco é persona non grata.

(Claro que isto é uma hipérbole e que há excepções, sendo isto um retrato geral e, certamente, imperfeito.)

No meu caso, partindo da minha crença na superioridade moral de não comer animais, em que é que isso muda como vejo @ outr@? A grande maioria das pessoas com quem convivo: o meu namorado, a minha família mais chegada, amig@s próxim@s – ninguém é vegetarian@. E eu não me acho (e não sou) melhor que el@s. Não sou uma pessoa moralmente superior, mesmo que acredite estar a fazer algo moralmente superior. Nem passo a ver-me dessa forma quando pratico uma boa acção como fazer voluntariado ou ajudar alguém. Percebi: será que é assim que se conjuga religião e secularidade?

Todos conhecemos o mote «A nossa liberdade termina quando invadimos a do outro». Agora, sendo que nunca conseguiremos ter uma hegemonia de pensamentos, como definimos o espaço de consenso? É mesmo tudo relativo?

Pergunto: não é para isso que servem os Direitos Fundamentais do Homem, a Constituição e o nosso sistema legal? A meu ver, uma pessoa pode ter as opiniões que quiser, mas não pode exigir «RESPEITEM-ME» ao ser confrontad@ com as mesmas ou gritar «CENSURA» quando sofre as suas consequências. Além disso, também acredito que as tentativas de factos disfarçadas de opiniões não têm de ser respeitadas e devem ser debatidas ao máximo.

Num exemplo caricato, eu posso achar que a Casa dos Segredos é um neurotóxico em formato televisivo que não se coaduna com entretenimento. Ou que usar meias brancas com sandálias fica mesmo muito mal. São opiniões; não valem de nada.

Devo passar disso a exigir o cancelamento da série ou em banir meias brancas? Lá porque a Casa dos Segredos não me entretém, não quer dizer que não o faça para outras pessoas, muitas delas bastante inteligentes. Discutir os meus gostos é completamente diferente de afirmar «só pessoas estúpidas é que vêm a Casa dos Segredos». Esta frase não é uma opinião. É uma tentativa de facto.

Perante simples opiniões, poderemos (e devemos) debater o que leva alguém a pensar dessa forma, desconstruir preconceitos e utilizar factos para sustentar a nossa própria visão, mas é impossível impor uma forma “certa” de pensar. São daqueles debates que conseguem acabar com «concordamos em discordar». Perante tentativas de facto, um debate é inerente, sendo que podem existir respostas certas e erradas, consoante os factos. É possível investigarmos “quem tem razão”.

Vamos a exemplos de opiniões com as quais não concordo e as suas tentativas de facto:

  • Opiniões:
    • «Faz-me confusão ver uma mulher, com filhos, a trabalhar».
    • «Não consigo imaginar-me numa relação sem sexo».
    • «Acho que o sexo anal é uma forma inferior de relação sexual e faz-me nojo».
    • «Não percebo como é que a minha filha consegue gostar de mulheres».

 

  • Tentativas de facto:
    • «O lugar de uma mulher, com filhos, é em casa».
    • «Uma pessoa assexual é só alguém que nunca foi bem fodid@».
    • «O sexo anal é imoral e deve ser proibido».
    • «A minha filha não é lésbica; está é doente».

 

Nas tentativas de factos, há artigos que podem ser citados, estudos que podem ser desenhados e a insipiência de uma pergunta a ser respondida. Na ausência de uma resposta definitiva, poderão, ainda, existir inúmeras opiniões contrárias apoiadas em factos tão ou mais robustos.

Relembro, ainda, que vivemos num estado secular, em que a nossa base de respostas não é religiosa. Assim sendo, basear uma tentativa de facto ou um juízo moral em palavras dogmáticas e acríticas também não é válido.

Resumindo, com base nos exemplos acima, a pergunta «O lugar de uma mulher, com filhos, é em casa?» consegue ser debatida com uma complexidade muito superior à pergunta «Faz-te confusão ver uma mulher, com filhos, a trabalhar?». Se a pessoa responder que «Sim» à segunda pergunta, podemos mesmo argumentar que não lhe faz confusão? Somos omnipresentes o suficiente para isso?

Parecem perguntas e exemplos caricatos, mas foram discussões ridículas que já tive de tolerar. Acho muito estranho que alguém de fora afirme «tu queres é chamar à atenção», «tu lá no fundo és gay; eu também achava que era bissexual» ou «tu não queres fazer isso». Eu sei o que sinto e o que quero melhor que ninguém.

 

Enquanto “um vegetariano num Mundo omnívoro”, aprendi que a minha forma de viver (neste caso comer) não é certa ou errada. É apenas uma de muitas opções baseada numa opinião pessoal que não imponho ao outro.

E é isto que me permite opor-me pessoalmente a fazer experiências em animais sem as querer abolir por completo, por ainda não existirem, atualmente, alternativas para todas as situações que o exigem. É o que permite que minha querida avó cozinhe pratos vegetarianos quando a visito, mas ela continuar a achar que é «um disparate» (sic). É o que permite uma Testemunha de Jeová dar aulas de Alemão a uma pessoa pansexual sem problemas. Aliás, é o que permite que uma sociedade funcione.

Muito mais do que uma imposição de uma diversidade cultural egoísta, isolada, fechada a debates e com ghettos físicos, sociais e culturais, temos de aprender a comunicar de forma empática e respeitosa; relativizando as nossas próprias convicções, não factuais. O/a outr@ não é estúpid@ quando discorda de uma opinião que temos; há, em muitos assuntos do nosso quotidiano, visões igualmente válidas que são discordantes. É esse espaço cinzento que falta definir e construir.

 

Termino este (longo) texto com outro episódio numa outra aula: ao discutirmos o Holocausto, falámos um pouco sobre as perseguições que foram feitas às várias minorias.

Recordado da perseguição às Testemunhas de Jeová, discutimos a razão para tal e admirei a coragem de algumas pessoas que se insurgiram contra o regime. Ao ouvir a frase «não fomos só nós que fomos perseguidos; vocês também», sorrio e olho-a nos olhos. Não tenho dúvidas: é muito mais o que nos une do que o que nos separa.

 

Fonte: Unsplash por Slava Bowman (imagem)

3 comentários

  1. Atrasada nos textos como vai sendo meu apanágio! Mas ainda a tempo de comentar este e, já agora, desejar boas festas.

    muita bom texto, Filipe. Gostei muito da tua reflexão. Empatia e respeito. Proximidade e recuo de nós própri@s quando é preciso.

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