Carta aberta a João Miguel Tavares

Caro João Miguel Tavares,

Dirijo-me a si na qualidade de jovem leitora do jornal Público, no sentido de o parabenizar pelo seu artigo último, “O dia em que me tornei homofóbico”.

Antes de mais, gostaria de lhe agradecer o input tão valioso sobre a dinâmica da comunidade LGBTI do ponto de vista de um homem cisgénero heterossexual branco. Na verdade, é a primeira vez que um homem cisgénero heterossexual branco dá a sua opinião sobre a temática LGBTI. Mais, congratulo-o por tão abertamente se declarar homofóbico. Hoje em dia, é bastante difícil para um homem cisgénero heterossexual branco ter uma plataforma para falar sobre o seu ódio, ou vá, menosprezo, por “minorias historicamente oprimidas”.

Escrevo para lhe dizer que lamento a agressão de que foi alvo. Se foi micro, já não sei, eu diria até que foi macro!, uma vez que micro agressão é algo diferente. Micro agressão diz respeito aos pequenos incidentes vocabulares do quotidiano. Tentarei exemplificar para que perceba toda a extensão do conceito. Para o João ser considerado vítima de uma micro agressão, uma pessoa teria que se dirigir a si com afirmações como “Que giro, sempre quis ter um amigo gay!”, ou “Para mulher, até é inteligente” ou “Sempre tive curiosidade em fazer sexo com uma pessoa preta”. Como, até à data, o João não é gay, nem mulher, nem preto, a conclusão lógica é a de que só pode ter sido vítima de uma macro agressão.

Sinto-me bastante empática para consigo. Não possuo sequer a capacidade para conceber o quão terrível deverá ser ter estranhos a gritarem-me barbaridades na rua. Como ousam! Deve ser uma experiência tenebrosa, desconfortável, “embaraçosa” como o próprio João a descreveu, humilhante. Qual deverá ser a sensação de ser assediada num espaço público – sim, porque o João foi assediado, haja justiça! – por sujeitos que nunca vi, que respeito por mim nada têm, que não me julgam ser humano mas mera representação de algo que não compreendem, que rejeitam, que detestam? Ai, João, nem quero pensar!

Mudando de assunto, que este até calafrios me dá, quero agradecer-lhe humildemente o seu apoio ao casamento por duas pessoas do mesmo género e por reconhecer o direito de um casal homossexual à adoção. Não tenho palavras para descrever o quão eternamente grata lhe estou, por validar, da sua sapiente perspetiva de homem cisgénero heterossexual branco, os direitos de uma minoria que até então era considerada menos capaz, menos respeitável, menos pessoa. É um privilégio ter visto estas causas apoiadas, faladas, discutidas, por si e por tantos outros homens e mulheres heterossexuais. A aprovação destes direitos que torna os casais homossexuais mais casais aos olhos da lei, não teria sido possível sem a luta e apoio incondicional de pessoas bondosas e compreensivas como o João. Assim sendo, parece-me gravíssimo que se venha questionar a sua gay friendliness. Aliás, tal como disse no dito artigo sobre a lamentosa comparação entre homossexualidade e toxicodependência da parte de Maria José Vilaça, “Ao exporem as suas ideias, temos uma excelente oportunidade para as rebater e mostrar aos outros a superioridade dos nossos argumentos. Infelizmente, é cada vez menos isso que estamos a fazer.” Concordo em absoluto! O que é necessário na sociedade contemporânea é fornecer um espaço seguro para que as pessoas possam manifestar as suas opiniões de ódio. Utilizo o termo “ódio” num sentido de não-aceitação, ou seja, deveremos proporcionar uma voz às pessoas que, devido à progressão de conversas sobre minorias e sua opressão por discursos hegemónicos patriarcais e heteronormativos, já não se sentem confortáveis para expressar a sua opinião heterossexista. Basicamente, sugiro a criação de uma plataforma em que pessoas como o João possam explorar e discutir as suas tendências vestigiais de homofobia livres de preconceito, sem que de apoiantes do PNR sejam acusados, num ambiente de harmonia, segurança e compreensão.

Relativamente à questão da doação de sangue aí, meu caro, teremos que discordar. Poderíamos debater-nos infinitamente sobre o assunto e, provavelmente, continuaríamos sem chegar a um consenso. Como diz, “(…) nos temas ditos “sensíveis”, que envolvam minorias historicamente oprimidas, qualquer discordância em relação a uma posição aceite pela generalidade da comunidade é obrigatoriamente reflexo de um preconceito profundo. Mesmo que eu esteja errado, não estou apenas errado – sou um opressor.” Ora, isso já é demais, não é? Uma pessoa já não pode mostrar desagrado por uma coisita que cai logo o Carmo e a Trindade! Só porque indivíduo X não aprecia couve, não significa que deteste toda a classe do legume. Do mesmo modo, só porque o João é um nadinha homofóbico, só porque odeia, ou vá, lhe desagrada um poucochinho a homossexualidade, não têm que se pôr a injuriar e a chamar nomes feios.

Já agora, felicito-o por ter exemplificado o caso do escrutínio de Ricardo Araújo Pereira, homem cisgénero heterossexual branco, sobre o valor cómico do termo “mariconço”. As pessoas hoje em dia levam as coisas muito a peito. O João recorda o caso do Rui Sinel de Cordes, outro homem cisgénero heterossexual branco, que fez uma piada sobre a criminalização do assédio sexual no espaço público, vulgo piropo? Parafraseio, mas julgo ter sido qualquer coisa como “Se fizerem queixa do meu piropo, serão violadas porque, se é para ir para a prisão, ao menos vou de papo cheio”. O comediante foi alvo de censura no Facebook com este post, uma vez que terão existido pessoas que não percebem o potencial cómico da violência de género, sendo este incidente representativo do atentado à liberdade de expressão, valor máximo e absoluto da sociedade, que está a ser realizado por grupos oprimidos.

Em suma, caríssimo, tem todo o meu apoio. Enquanto aliado convicto da comunidade LGBTI, a sua indignação é justificada; o ser homossexual, pobre e mal-agradecido, mordeu a mão que o alimenta. Foram árduos os anos de penosa luta pela aceitação de homossexuais pelo homem cisgénero heterossexual branco, que hoje revê nesta minoria identitária o direito ao tratamento mais ou menos igual em contexto social, legal, económico e cultural. Se dantes o homem cisgénero heterossexual branco odiava, ou vá, não reconhecia a existência de pessoas capazes de manter relações românticas ou sexuais com pessoas do mesmo género, hoje o mesmo homem estende a mão, benevolente, e sente apenas uma repulsa menor. Aos olhos do homem cisgénero heterossexual branco, a pessoa homossexual teve o privilégio de passar de abominável ao estatuto de tolerável. E, por isso, a comunidade LGBTI dever-se-ia deixar de mariquices, que já muito por ela fez o João.

Com isto me despeço, desejando um santo Natal para si e para os seus.

Com os mais cordiais cumprimentos,

Mafalda Duarte Barrela

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