Do vómito que é o homem-da-relação

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Algumas expressões são capazes de me arrancar, em certos contextos, ao meu habitual estado sério e pacífico. Uma delas é a de “homem da relação”. Vejamos um exemplo de tudo o que está errado nesta expressão, se formos capazes de ler este texto repleto de equívocos e de preconceitos homofóbicos, lesbofóbicos e misóginos.

É evidente, embora haja quem o negue veementemente, que num casal, seja ele de duas pessoas de sexo diferente ou de duas pessoas do mesmo sexo (estamos por ora a considerar apenas casais a dois) há quem seja o homem e há quem seja a mulher. Pese embora o facto de haver raras situações onde num casal heterossexual o papel de cada elemento não é o evidente ou esperado, nos casais homossexuais nem sempre é assim. Ora vejamos.

Do homem espera-se que seja viril, dominante, forte, inteligente, agressivo e radical. Também se espera do homem maior líbido e não raras vezes necessidade de mais do que um/a parceiro/a sexual. Da mulher, espera-se que seja fútil, dócil e submissa, frágil (ou mesmo fraca), menos inteligente (porém, nem sempre estúpida) e tolerante. Ainda se espera que a mulher seja bonita, vaidosa, sensual para a retina mas casta e com uma líbido contida, ao serviço do homem.

Num casal de dois homens, um necessariamente será o homem da relação, enquanto o outro será, por exclusão de partes, a mulher da relação. De que outra forma um poderia ser o dominante e o outro o protegido? Esta questão leva-nos diretamente para outra, a sexualidade do casal e os papéis sexuais de cada um. Como nos casais normais, o homem da relação é o elemento ativo, que assume a função de insertivo e a mulher da relação é o elemento passivo, assume, pois, a função de elemento recetivo. Esta relação binária e complementar dos casais é o padrão natural desde sempre, não só em termos biológicos como em termos emocionais e sociais.

Tal como acontece nos casais hetero, cada um dos elementos tem uma forma diferente de exercer o poder. Se é verdade que o homem da relação, o ativo, às vezes exerce o seu domínio de forma mais veemente, por vezes até violenta, o outro elemento, o passivo, é por vezes indireto e pérfido como são as mulheres. Agride sem que isso se note e exerce algum domínio subliminar, não evidente. Nestes casos dizemos que é um passivo-agressivo.

Mas nem tudo é semelhante entre os casais heterossexuais e os casais de dois homens. Há um facto inegável relacionado com a líbido: os casais gays masculinos, são casais em que há mais líbido global. Mesmo o elemento que assume o papel da mulher, isto é, o elemento recetivo é homem e, portanto, tem elevado líbido levando a que, por vezes, a sua vontade voraz de ser inserido, isto é, que o possuam, o leve a tomar um papel muito insinuante face aos homens viris, sejam eles gays ou hetero. Chamamos-lhes passivos-oferecidos ou, também, bichas-passivonas. Se, claro, isto acontece frequentemente e é sabido, logo passam a ser conhecidos na praça pelas suas propriedades de power-bottom. É fácil identificar estes elementos, por exemplo, nas pistas de dança em que usam o rabo para chamar a atenção, esfregando-se onde for possível, ou de onde possam esperar algum. Este facto é grandemente potenciador da infidelidade destes casais que, também por esse motivo, são mais instáveis e menos duradouros.

Vejamos agora o caso de casais de lésbicas. Também nestes casais há o papel do homem da relação e da mulher da relação. Por serem mulheres, o papel da sexualidade é menos importante do que em casais com homens e frequentemente o que mantém o casal é uma grande relação de amizade e empatia entre as duas. Há muitos casos, eventualmente até a maioria, em que não há de todo sexo, por inexistência de falo, ou algo que o substitua. Aqui, nos casais de lésbicas, sonegados ao prazer do sexo verdadeiro, o papel do homem da relação é da mulher que veste as calças. É a dominadora que toma as decisões e sobre a qual recai a responsabilidade da condução da vida conjunta. À outra, cabe-lhe o papel de mulher, submissa, portanto.

Há um efeito interessante nestes casais, que não acontece nos restantes. Como as mulheres têm, é bem sabido, um tipo de agressividade indireta, isto é, como dito acima, são pérfidas e subtis, é comum as lésbicas terem, à semelhança do que acontece com os homens em termos libidinosos, um excesso de perfídia que pode levar ao estabelecimento de uma relação cínica, onde cada elemento finge parte do que sente e sente parte do que finge. Se a este efeito somarmos o facto de as lésbicas terem um pouco da agressividade que caracteriza os homens, ou pelo menos de assim se quererem comportar por a isso aspirar, facilmente se percebe que a violência (nem sempre física, contudo) entre casais de lésbicas é muito elevada, sendo comum aparecerem publicamente com nódoas negras ou peladas no couro cabeludo.

Voltando à questão da inexistência de falo nas relações sexuais de um casal de lésbicas, é frequente a sua substituição por um massajador facial ou por um dildo. O papel de elemento insertivo e de elemento recetivo pode, pois, no coito, ser desempenhado por qualquer uma das lésbicas ou até pelas duas, alternadamente ou até simultaneamente, visto que existem dildos com essa função. Recordo, contudo, que uma boa parte dos casais de lésbicas não praticam sexo, substituindo-o por carícias, pelo que esta questão nem sempre se coloca.

Caro leitor. Se foi capaz de chegar ao fim deste texto sem vomitar ou de mentalmente me mandar para o falo, ou mesmo para a vagina, o que só não seria bom porque eu sou gay, então dou-lhe os meus parabéns. Eu próprio mandei-me várias vezes para inconfessáveis da vida.

Todos os preconceitos plasmados no texto acima partem de pressupostos e ideias falsas e, infelizmente, muito enraizadas na nossa sociedade. O homem não é mais forte do que a mulher. O masculino não vale mais do que o feminino.

Como disse no início, estes preconceitos são de origem homofóbica e lesbofóbica mas, sobretudo, misógina. A misoginia é, na verdade, um quadro discriminatório que, a meu ver, engloba todos os outros baseados no género, sejam eles relacionados com a orientação sexual ou com a identidade de género. Parte do pressuposto, ou da ideia, de que a mulher é um ser mais fraco do que o homem. Por mais que isto se diga, e denuncie, não vejo outra forma de enquadrar este cenário misógino.

O que verdadeiramente acontece é que ao homem se atribuem as características mais valiosas do ser humano, as mais validadas e conceituadas pela sociedade, consequentemente. À mulher atribui-se sempre um perfil muito mais maleável, dúctil portanto, diminuindo-a invariavelmente quando comparada com o homem. Mesmo, se repararmos, quando alguma mulher tem uma atitude firme e convicta, que necessita de coragem, diz-se que veste calças ou então que tem tomates, valorizando assim uma atitude de macho, que só uma mulher com características masculinas pode ter.

A luta do feminismo há muito (muitas décadas) que identificou este quadro misógino da linguagem, sobre o qual já escrevi aqui e, portanto, a luta pela igualdade nas questões de orientação sexual ou identidade de género (“afinal que razão teria um homem para querer ser, ou sentir-se, mulher?”) tem muito a aprender com o feminismo.

É por isso que a expressão “homem da relação” contém em si muito do que está errado no pensamento de grande parte das pessoas. Uma relação não tem, claro, que ter um homem e uma mulher. Uma relação tem duas pessoas (ou mais até). E a construção da relação faz-se sempre em função das características pessoais e individuais dos seus elementos, sem que nenhum papel se deva esperar de um ou de outro, só porque tem cromossomas XX ou XY, ou só porque é um homem ou é uma mulher.

E para aqueles que julgam que o argumento biológico explica tudo e que justificam as diferenças entre homens e mulheres pela evidência genética, ou estatística que seja, a única lição que a biologia nos deu até hoje é que o ser humano é muito mais complexo do que isso. E que o facto de que muitos seres se comportarem em função de estereótipos aprendidos culturalmente ao longo de milénios só vem explicar o quão complexos, e diversos, somos, fruto de camadas e camadas de civilização (palavra desapropriada e ambígua, pois tratam-se quase sempre de preconceitos e crendices). A genética dá-nos um corpo, que é uma base. A construção da identidade do indivíduo, e da relação, deve estar livre dos estereótipos masculinos ou femininos, para que as nossas relações não tenham homens nem mulheres, mas sim pessoas.

Para terminar, não posso deixar de, a este respeito, citar um cartoon que circula há alguns anos pela internet e que mostra dois hashi (conhecidos por pauzinhos chineses, embora possam bem ser japoneses) encostados um ao outro, que são observados por um casal faca/garfo, e em que a faca pergunta para o garfo “qual deles é o garfo?”. É isto, não é?

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Fonte (cartoon): pinterest