Entrevista a Margarida Faria (AMPLOS): “O silêncio massivo de pais e mães é o mais complicado”

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A Margarida Faria é a Presidente da Associação AMPLOS, uma associação que se define como “um grupo de pais que se propõe lutar por uma sociedade mais justa“, opondo-se “a todas as formas de discriminação“, nomeadamente por orientação sexual e identidade de género. Aproveitando o “Fórum Pesquisas CIES Género, Cidadania e Políticas de Igualdade” que decorreu no ISCTE em que a Margarida participou, falámos com ela a seguir e, num final de dia chuvoso, as palavras assim fluíram:

De forma a dar a conhecer aquilo que promove e defende a AMPLOS a quem nos lê – e ainda para mais na primeira pessoa – como apresentaria a associação?

A AMPLOS existe desde 2009 como ideia e foi legalizada em 2010. Ela surgiu da necessidade de pais conhecerem outros pais que tivessem filhos e filhas homossexuais. Surgiu também na sequência duma conferência organizada pela ILGA sobre questões de discriminação, em que estavam representados jovens, polícias, estrangeiros, e eu nessa altura senti que faria todo o sentido haver uma associação de pais que também tivesse uma voz na denúncia da discriminação e no seu combate, pois os pais também são discriminados pela homossexualidade dos filhos.

Pretendemos também ter uma intervenção pública. Começámos por pensar em pais LGB e logo na primeira apresentação com jovens falaram-nos das pessoas trans e imediatamente dissemos que, obviamente, somos AMPLOS e as razões da discriminação das pessoas trans são semelhantes às da discriminação das pessoas LGB. Não nos tínhamo-nos especializado nas questões da homossexualidade, embora tenhamos percebido logo que a integração das questões trans iria abrir novas formas de intervenção, outras dificuldades e outro conhecimento.

Em termos da questão da homossexualidade, era o nosso próprio testemunho, dos pais que criaram a associação e sabíamos que iríamos encontrar impedimentos psicológicos e sociais, mas do nosso ponto de vista estavam resolvidas; já sobre as questões trans houve uma caminhada mais difícil, pois havia desde logo um impedimento dos serviços de saúde que as pessoas solicitavam quando nos contactavam. Mas foi por aí que caminhámos e quando legalizámos a AMPLOS, fizemo-lo como “associação de pais e mães pela liberdade de orientação sexual e identidade de género“.

Temos três valências principais. Aquela que damos maior importância é o apoio aos pais, quer em termos individuais, quer em grupo, e temos com isso chegado a todo o País dando apoio a mais de 300 famílias, passando pela integração das pessoas numa primeira reunião em grupo onde muitas coisas se resolvem, as pessoas têm muita vontade de ter alguém com quem falar, porque muitas vezes não têm uma única pessoa com quem partilhar no seu círculo social. E quando as pessoas começam a falar, resolvem logo uma série de problemas. O silêncio massivo dentro do próprio é o mais complicado. E depois vêem os outros pais satisfeitos com a situação, o que ajuda imenso, não quer dizer que as pessoas não tenham o seu próprio tempo de negação. Nós nunca apresentamos as coisas na obrigação das pessoas ultrapassarem os seus problemas rapidamente, mas há uma emulação positiva por ver outras pessoas com os assuntos resolvidos e isso motiva as restantes que assistem aos resultados no ambiente familiar.

Neste momento, e ao longo destes 7 anos, posso dizer que alargou-se a nossa actuação a nível territorial, temos um núcleo no Porto bastante autónomo, tal como em Lisboa, mas temos pais em praticamente em todos os pontos do país que podem ir ao encontro de outros pais. Temos uma regularidade de reuniões a cada 2 meses quer em Lisboa, quer no Porto e que são momentos de união e de sentimento, de uma família que por vezes substitui a clássica, porque os pais também têm essas dificuldades por não terem laços. Temos cada vez mais pais capazes de nos representar, o empoderamento dos pais e das mães tem sido uma coisa fantástica e esta entre-ajuda é a nossa prioridade principal.

Temos também uma acção de formação, divulgação e educação a vários níveis, desde o ensino secundário ao superior, tal como grupos profissionais que nos convidam para falar.

A terceira área de intervenção é a influências das decisões políticas e a denúncias das más práticas e estamos neste momento a dar bastante importância a esta área, porque tem surgido com esta nova consideração política a possibilidade de intervir. Fizemos uma intervenção sobre a identidade de género na infância, fomos ao Parlamento falar com os deputados para falar sobre a importância de pensar nas crianças trans (as pessoas não são trans aos 18 anos só porque a lei diz que as pessoas são trans aos 18, as pessoas são trans desde que não se identifiquem entre o género atribuído à nascença e o sentido).

Defendemos que a lei de identidade de género que está em discussão deve incluir a possibilidade das crianças mudarem o seu documento de identidade, tal como a possibilidade de serem administradas hormonas como bloqueadoras de puberdade, para que as crianças possam fazer uma transição gradual e, no fundo, acertar a sua puberdade com a puberdade das crianças cisgénero. Para além desta alteração permitir um desenvolvimento mais harmonioso das crianças, também existe uma perspectiva economicista, o Estado poupa em tratamentos mais tardios, como vasectomias e outros tratamentos mais radicais para reconfiguração daquelas pessoas.

Como a lei de identidade de género está actualmente a ser discutida, organizámos uma conferência sobre a diversidade de género na infância onde trouxemos testemunhos de pais que tiveram situações em tribunal dos seus filhos ou que estão a trabalhar nestas leis no Chile e no México; trouxemos também activistas mães espanholas – onde há uma das melhores leis do mundo sobre identidade de género – da Associação Chrysallis da comunidade de Madrid que falaram aqui no ISCTE numa conferência e depois fomos com elas falar com os grupos parlamentares do PCP, PEV, Bloco de Esquerda e do PS. Estamos muito empenhados e gostaríamos que a nova lei de identidade de género tivesse essa possibilidade dada às crianças, mas também que estivesse na própria lei indicações sobre transição social em meio escolar. Mesmo que as crianças não queiram mudar os documentos de identificação pelo menos que no meio escolar seja possibilitado às crianças serem tratadas com o género sentido e auto-atribuído.

Existe alguma relutância nas escolas para que ocorra essa mudança?

Aquilo que fizemos foi convidar o Secretário de Estado da Educação, João Costa, para estar nessa conferência e ser moderador do painel. As mães deram o seu testemunho como mães de crianças que tiveram que enfrentar as escolas e o Secretário de Estado pediu-nos o documento legislativo para as escolas. Nós fizemos um documento que, se for assumido pelo Ministério da Educação, as escolas têm que tratar uma criança nesta situação de acordo com determinados normativos. O que soubemos é que há uma intenção de incluir na lei de identidade de género estas indicações o que a tornará muito mais completa. Gostaríamos igualmente que a nova lei, tal como outras, tivesse uma implicação relativa à Saúde. Estivemos no Parlamento preocupados com o acesso à saúde das pessoas transexuais.

Entretanto a AMPLOS evoluiu, começámos por ser um grupo de pais com filhos homossexuais, hoje também de pais de pessoas trans e agora temos um núcleo para as crianças mais pequenas e é muito engraçado como temos a nossa identidade digital – temos um site, um blogue e uma página no Facebook – e os pais chegaram à AMPLOS no sentido em que as suas crianças pequenas são discriminadas em meio escolar, porque não querem lá que brinquem com aquilo que eles querem brincar. Por exemplo, procuraram espontaneamente uma associação de pais baseada na liberdade e pediram-nos ajuda. O que acontece é que a nível mundial há cada vez mais pais de crianças com expressão de género não-binária que se juntam e que, no fundo, querem libertar as crianças do estigma do estereótipo enquanto cresce.

Há pais que limitam as escolhas das suas crianças no acesso a roupas e brinquedos, por exemplo, para as proteger, julgam eles, quando na realidade estão efectivamente a limitar o seu desenvolvimento…

E isso acontece nas próprias escolas, o que nós queremos é que ninguém as limite. Há pais nos procuram e nos relatam as situações das crianças e têm muito receio, porque já perceberam que a escolha de algumas actividades, alguns brinquedos ou algumas roupas com as quais gostariam de viver lhes trará problemas, sobretudo com rapazes. As raparigas têm um pouco mais de liberdade na expressão de género, os rapazes criam à volta das suas práticas uma ideia de transgressão e de facto as escolas chamam os pais, porque o menino brinca de determinada forma e os pais interiorizam esse sentimento de angústia. Há pais que nos dizem que têm medo de ir de férias com outros amigos porque sabem que vão brincar com as bonecas à frentes deles… esta fiscalização de género social cria situações onde os pais não sabem como negociar sem ferir os seus próprios filhos.

Isto é um movimento global, há cada vez mais crianças que se afirmam trangénero, porque também cada vez mais estas têm acesso à informação, percebem o que são e começam a falar com os pais mais cedo. E, portanto, a AMPLOS tem três núcleos de pais: os pais de LGB, os pais de trans e os pais das crianças que criaram uma página no Facebook chamada Espelho Eu, uma plataforma de informação e de partilha em que tivemos um protocolo com o Instituto de Apoio à Criança.

Existem profissionais a integrar a equipa da AMPLOS, psicólogos, por exemplo?

Quando vemos alguém que precise de apoio psicológico temos algumas pessoas de confiança que sabemos que irão dar uma resposta eficaz. No início a AMPLOS tinha duas psicólogas, mas depois percebemos que pretendíamos uma associação de pais para pais e não queríamos pessoas na direcção que não o fossem e assim quem nos procura também se sente mais empoderado e mais capaz. Neste momento na direcção temos uma mãe de um jovem Trans e outra mãe de uma criança pequena que fizemos questão de a ter connosco.

A AMPLOS é assim uma associação de comunidade, de grupo, apoiando-se mutuamente…

Precisamente, tal como a rede ex aequo cujo modelo partilhamos. Funcionamos como uma organização em que cada um de nós cria um nó de uma rede com as mesmas funções, é uma organização pouco hierárquica e cada um com capacidade para actuar no terreno.

Houve alguma luta que tenham tido nestes anos da associação em que tenham sentido mais dificuldade, mais atrito?

Perdemos algumas batalhas pelo caminho, isto é, não conseguimos que o ambiente dentro da família se alterasse. Recebemos pedidos de ajuda de jovens em situações muito desesperadas e muito graves. O nosso trabalho torna-se mais fácil quando conseguimos trabalhar com os pais e agora, havendo financiamento de apoio à vítima da Casa Qui e da ILGA Portugal, conseguimos encaminhar as famílias e trabalhar com os pais, não podemos trabalhar com o filho e virar as costas à mãe ou ao pai.

Para 2017 qual é o grande objectivo da AMPLOS?

Uma lei de identidade de género que retire de facto o diagnóstico para alteração do género e nome nos documentos civis, o que vai em linha com as indicações internacionais. Que esta não se limite aos 16 anos de idade e tome em consideração as crianças. Vamos lutar o mais que pudermos para que a lei da identidade de género tenha um capítulo sobre saúde e outro sobre educação, para implicar os ministérios da saúde e da educação.

Alguma mensagem que queira passar a quem nos lê?

Eu gostaria que a AMPLOS tivesse mais apoio, aliás, a comunidade LGBT em Portugal tem poucos aliados não-LGBT. Nos EUA existem os “allies for LGBT rights” e as pessoas têm que perceber que esta é uma luta por uma sociedade melhor. Gostaria que viessem então mais pessoas apoiarem as várias organizações e colocarem-se a seu lado.

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