Confissões Radicalistas de um Anti-Radicalista

Nunca, nos meus 33 anos de vida, vivi em estado de guerra. Não que elas não tenham existido, mais longe que perto. Mas estive sempre distante de forma a sentir-me confortável e a preservar uma falsa sensação de segurança que me permitisse passar ao lado das trevas sem nelas me envolver. Tive esta realização quando um amigo partilhou um texto que mostrava as três opções possíveis para se viver num mundo injusto:

A primeira é aquiescência passiva, em conformidade com o mundo tal como o encontramos. Aceitar o status quo. Porque o conformismo é a virtude mais recompensada pela sociedade. A segunda opção é a resistência violenta à injustiça do mundo. Está irritado e amargo, defendendo o fraco ferindo o forte, mas criando também inimigos em todo o lado. A terceira abordagem é a resistência não-violenta, quando luta contra seus inimigos, mas não os odeia. Procura não derrotar, mas persuadir. Vai tornar o mundo num lugar melhor.

Há aqui uma clara manipulação moral para a terceira abordagem que é, idilicamente, a posição mais adequada em qualquer situação. Infelizmente ela torna-se cada vez menos comportável e em lugar de três opções de abordagem à injustiça temos um espetro de algumas dezenas ou centenas de possibilidades.

O mundo ainda não está em chamas. Mas as acendalhas estão a ser colocadas em todo o lado. Sem necessidade do politicamente correto, reuniões secretas e conspirações. Porque existe agora carta branca para o fazer às claras. Desde e com Trump. Mas Trump é apenas um catalisador. Os radicalismos de extrema-direita e contornos fascistas encontravam-se ligeiramente entorpecidos e temporariamente minorados face a alguns avanços na luta contra a intolerância que assistimos nas últimas décadas.

Hoje toda essa contenção forçada se evaporou. O racismo, xenofobia, homofobia, transfobia, misoginia estão em toda a parte. Não se revelam só nas medidas executivas, doentias e extremistas do Presidente Trump nestas poucas semanas de poder. Revelam-se no Facebook de amigos ou conhecidos que agora se revelam preocupados com racismos invertidos ou androfobia violenta. Revelam-se nas colunas cor-de-rosa que noticiam os ataques mútuos entre duas atrizes, anteriormente amigas, por uma defender frontalmente o bloqueio a toda a imigração em jeito nacionalista. Revelam-se nas palavras de um cronista dos maior semanário do país que abertamente diz que o tempo de hegemonia e igualdade sociais acabou e que é hora do homem branco heterossexual e católico restabelecer a sua dominância. Tudo em Portugal.

Radicalismos. Com justificações imediatas e manifestamente suficientes para exercer discriminação de forma aberta e descarada. Com todas as argumentações de resposta a eles a serem catalogadas de posições extremistas. E radicais. E se calhar são mesmo. Pessoalmente nunca me considerei radical. Até hoje, de forma menos ou mais bem conseguida, tentei exercer o meu ativismo pela igualdade social, LGBT ou não, de forma ponderada, inclusiva e tentativamente esclarecedora. Contudo sinto essas ferramentas de diálogo e aproximação a perspetivas opostas a serem francamente menosprezadas. O que me leva a sentir… radical.

Sinto-me radical quando vejo aquele post no Facebook e, depois de algumas tentativas de persuasão pacífica pela via da razão, percebo que existe mesmo ali um preconceito grave que não se quer deixar ser obliterado. Sinto-me radical quando leio comentários de apoio à xenofobia com justificações nacionalistas e que não se deixam ser corrigidos por fatos comprovados pela estatística. Sinto-me radical quando ouço num jantar de convívio alguém dizer que “a culpa é dos árabes” e já estou demasiado esgotado para cair em argumentações que vão ser ignoradas. Sinto-me radical quando respondo de forma cáustica ao homem branco heterossexual e católico que se diz a real vitima de intolerância: por parte de negros, homossexuais e mulheres. Sinto-me radical ao sentir que essas ferramentas de diálogo não chegam para fazer frente a radicais.

Responder fogo com fogo raramente é boa ideia. Exacerba as divisões que já existem. Separa pessoas em que o entendimento poderia ser possível. Desfaz relações profissionais e pessoais. É, e sempre deverá ser, um último recurso. Mas será que estamos a chegar a ele? A realidade é que estamos em guerra. Uma guerra sem bombas. Sem metralhadoras. Sem campanhas militares. Sem generais. Mas com tudo o resto. E é talvez a mais perigosa guerra que já vivi. Cada dia que passa os lados opostos das trincheiras reunem mais soldados. Soldados sem inclinações bélicas, que não queriam estar a combater aquela batalha. No entanto estão lá. Estamos lá. No meio da lama e da poeira. Sem perceber quem é o soldado que estamos a tentar alvejar. Se é alguém que já lutou ao nosso lado. Se já foi nosso amigo.

Fonte: Medscape