Lady Gaga, A Conformista

Recordo-me perfeitamente da primeira vez que me apercebi da verdadeira capacidade disruptiva de Lady Gaga. Decorriam os MTV Video Music Awards de 2009, essa cerimónia que na sua génese oferecia o melhor que a música pop tinha para dar, mas nessa época já se tinha (há muito) tornado num mostruário redutor da artificialidade tenebrosa da estação. Mas, num assombroso golpe de asa de uma estrela em ascensão, Lady Gaga utilizou aquele palco para dizer algo sobre a fama e o culto das celebridades, bem como a sua posterior crucificação. Acaba a actuação de Paparazzi a sangrar, do peito e dos olhos, pendurada. Para os vampiros que a adularam, e depois sacrificaram, apreciarem “condignamente” a sua morte.

Tinha tudo a perder. Mas esta radicalização do papel da estrela pop, que podia representar algo para além de beleza e sexo, foi o que conquistou todos aqueles que a começaram a seguir. Ela própria, uma mulher que não se colocava em nenhum grupo socialmente apetecível, considerava-se uma marginal e atraiu assim todos aqueles que também nunca se conseguiram enquadrar. No trabalho. Na escola. Na rua. Em casa. Com a sua militância LGBT, que muitos (injustamente) consideraram oportunista, ganhou um exército.

Vou desde já admitir. Adoro Lady Gaga. Adorei Lady Gaga na inocência glam-pop de The Fame e posterior irreverência cáustica de The Fame Monster. Adorei Lady Gaga, mais que nunca, quando lança com Born This Way um álbum esquizofrénico mas repleto de significado e audácia. Adorei Lady Gaga até no deslize semi-pedante de Art Pop e adorei Lady Gaga no recente regresso a uma verdade pessoal e despida em Joanne. Por isso quando terminei de assistir à tão badalada e antecipada performance de Gaga no intervalo do Super Bowl, o espetáculo de entretenimento com maior audiência do Mundo, não pude deixar de sentir uma tremenda desilusão.

A actuação foi extremamente bem recebida no geral, seja pela crítica ou pelo público. Foi apelidada de celebratória. Unificadora. Eu adicionaria previsível. Cobarde. Sim, cobarde. Lady Gaga nunca foi aquela mulher que media palavras e continha-se no seu discurso e apresentação. O seu desagrado com Donald Trump e as suas medidas cada vez mais fascistas é bem mediatizado e não seria de esperar que, numa época em que os valores de diversidade e igualdade que sempre apoiou de forma fervorosa estão tão ameaçados, ficasse tão dolorosamente silenciosa. Existiram alguns apontamentos medianamente interventivos. Começou a atuação com “God Bless America” uma canção de elevado teor patriótico e religioso, logo seguida de “This is Your Land”, que na sua origem e quando cantada na integridade pelo cantor de intervenção Woodie Guthrie – o “pai” de Bob Dylan, pretendia expôr as divisões e injustiças sociais dos Estados Unidos da América. Também existiu “Born This Way”, que entretanto se transformou num hino LGBT e foi talvez a primeira vez que a palavra “transgénero” foi pronunciada naquele palco.

Mas foi tudo o que se (ou)viu. Mensagens subliminares. Intenções escondidas. E uma actuação competente – com drones, pirotecnia e acrobacias suspensas – mas quase copiada a papel químico da gloriosa The Monster Ball Tour. Sete anos depois. No final ficou um vazio de ideias. Oportunidades perdidas. Muitos contestam que Lady Gaga não podia ir longe demais. Não podia ser nada senão celebratória. Não podia ser anti-sistema. Não podia ser Lady Gaga. E não foi. Foi uma estrela pop num desfile de êxitos que agradam o público. E conseguiu. Mas traiu-se a si mesma.

Ainda o ano passado, outro ícone musical Americano, Beyoncé utilizou o mesmo palco para apresentar “Formation”, um chamamento a armas no pico das tensões raciais nos Estados Unidos da América e vestiu-se a ela e às suas bailarinas com trajes do subversivo Black Panther Party dos anos 60 num óbvio e ressonante grito de revolta, em favor do movimento #BlackLivesMatter. Em 2009, no mesmo palco dos VMA Awards em que Gaga jorrou sangue, Beyoncé ganhava Video do Ano por “Single Ladies”. Uma inesperada inversão de papéis. Nesse dia ninguém ousaria afirmar que seria Lady Gaga quem se iria converter ao conformismo.