Hidden Figures, sobre a invisibilidade de mentes brilhantes (mulheres e negras)

O contexto é complexo, o enredo é simples.

No início da década de 60 do século 20, a NASA está numa corrida contra o tempo, ou melhor, contra a URSS, para colocar um homem no espaço e voltar a trazê-lo de volta, após meia dúzia de órbitas, são, salvo e vencedor. Num dos seus centros de investigação espacial a azáfama é muita, com a quantidade de cálculos complexos necessários todos os dias, com a ausência de máquinas capazes de o fazer e a pressão de uma guerra iminente.

Katherine , Dorothy e Mary são três computadores da ala oeste do campus da NASA em Langley, estado de Virginia, um estado sulista dos EUA. Muito embora hoje em dia seja comum dar-se nomes próprios aos computadores, naquela altura estes quase não existiam e os cálculos eram mesmo feitos à mão, isto é, com papel e lápis e seguindo algoritmos extensos, mais ou menos elaborados. Katherine Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe) eram, pois, pessoas, mulheres, negras, encarregues de fazer os milhares de cálculos diários necessários para alimentar as teorias sobre trajetórias espaciais, velocidades, ângulos e demais variáveis envolvidas na árdua tarefa de colocar uma cápsula espacial a orbitar a terra e devolvê-la em segurança. Como elas, havia mais cerca de 20 outros computadores, entre aspas. Todas pessoas, todas mulheres, todas negras, sem aspas.

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Nesta altura, muito estados americanos ainda tinham leis de segregação racial. Brancos e pretos, nunca se misturavam, com ou sem aspas. A segregação era completa, desde os lavabos, os assentos nos transportes públicos, o acesso a escolas e universidades ou, claro, o acesso a qualquer emprego com alguma responsabilidade superior, sobretudo na parte que respeitava a remuneração compatível.

Katherine, a figura central do enredo, invisível porém, é uma matemática brilhante que, fruto dos seus dotes para o cálculo, é colocada a computar no núcleo central do campus de Langley. Com uma perspicácia aguda para a física, acaba muito envolvida com os cálculos essenciais para a tarefa épica. A sua condição de mulher e de negra, contudo, embate no obstáculo do racismo e do sexismo, impedindo o seu progresso, e o da própria epopeia em si.

Mary e Dorothy são, também, cada uma à sua maneira, figuras invisíveis desta epopeia. Mary, por um lado, tem uma enorme vontade, e proporcional competência, para a engenharia. Impedida de aceder a estas tarefas, vai também lutar para tentar aceder aos estudos em engenharia e à sua progressão. Por seu lado, Dorothy, dotada de uma clarividência excecional, entende que o progresso só se faz investindo em conhecimento e antecipação. Irá também a sua condição de mulher e de negra ser um impedimento para a sua progressão?

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Figuras ocultas, invisíveis.

Hidden Figures é um extraordinário filme assinado por Theodore Melfi. Elementos Secretos foi a infeliz designação deste filme em português. É um manifesto, não há outra forma de o ver, contra o sexismo e contra o racismo. Mostra o silenciamento das mulheres e a segregação dos negros, nas tarefas ditas para homens brancos, melhor dizendo, em tudo e em todo o lado.

Três mentes brilhantes, de mulheres negras, tornam-se fundamentais para os objetivos da missão Friendship 7 que leva o primeiro astronauta americano, homem, claro, John Glenn (Glen Powell), a orbitar a terra e regressar em segurança. O que disse a história sobre elas? Silêncio e omissão. A história disse silêncio e omissão sobre a contribuição destas três figuras ocultas, mulheres e negras. Hoje, depois de uma homenagem tardia, mas muito necessária, atribuída pelo Presidente Barack Obama, em 2015, os feitos de Katherine Johnson, foram reconhecidos e ficaram mais visíveis.

Quantos destes grandes feitos da humanidade são reconhecidos às mulheres? E quantos são reconhecidos às mulheres negras? E nos campos da matemática, da física e da engenharia, em que os homens sempre dominaram de forma esmagadora, quase completa, quantas mulheres, quantas negras foram preteridas, silenciadas e invisíveis?

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Nestes casos, a realidade ultrapassa sempre a ficção, porém nem sempre como gostaríamos que tivesse ultrapassado. Nos últimos anos o cinema tem mostrado muito interesse por casos verídicos, ou baseados em factos reais, que tentam repor um pouco da visibilidade aos invisíveis e discriminados do costume. É o caso de The Imitation Game (Morten Tyldum, 2014) que retrata a vida de Alan Turing, um matemático inglês cujos feitos são imensos e incontáveis. Desde a forma como elaborou a máquina para decifrar o encriptador alemão Enigma, peça chave no fim da Segunda Guerra Mundial, até às suas publicações seminais para a ciência da computação, que inventaram a forma moderna do computador e, portanto, essenciais na revolução tecnológica. Curioso é perceber que a sua definição de computador é aplicada às mulheres negras que servem de computadores, entre aspas, no campus de Langley, retratado em Hidden Figures. Por ser gay foi preso e condenado a castração química e os seus feitos ficaram quase invisíveis e só muito tarde se celebrizaram. Neste mesmo filme é retratada a figura de Joan Clarke (Keira Knightley), também mulher, também matemática brilhante.

Voltando a Hidden Figures, e à segregação racial tão brutalmente presente nesta película de Melfi, percebe-se que a luta pelos direitos das minorias foi, como sempre é, um processo. Um processo lento, mas inexorável. No fundo, queremos acreditar que é mesmo inexorável, isto é, a conquista dos direitos é dura, mas perdura. Infelizmente, hoje, é mais difícil acreditar que estes processos de conquista de direitos de liberdade e igualdade não andam para trás. Há muito que assistimos a constantes ameaças aos princípios que norteiam estes direitos.

No estado de Virginia a segregação racial no sistema de educação já havia sido considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal de Justiça americano em 1954. Mas vemos que, em 1961, ainda Mary Jackson não conseguiu, sem lutar na justiça, aceder a uma universidade para estudar engenharia. E vemos precisamente aqui que a lei deve existir para proteger a liberdade e a igualdade para todos os cidadãos, independentemente da raça, da religião, do género, da identidade e da orientação sexual. Independentemente de tudo. E a lei deve estar à frente da sociedade. Deve ser, tem de ser aliás, uma locomotiva para a mudança das mentalidades, para a criação de condições de liberdade e igualdade, sobretudo, porque a mentalidade dos seres humanos é muito lenta a aceitar as diferenças e a incluir os excluídos. Um ponto alto deste filme é quando Dorothy conversa com a sua supervisora. Esta diz-lhe, depois de lhe recusar uma promoção a que tinha direito que, apesar do que elas [mulheres, negras] possam pensar “I don’t have anything against you all”. E Dorothy, diz-lhe, calmamente, mas de forma firme, “Yes, I know. I know that you probably believe that”. E é isto. Resume muito bem a forma como a internalização da discriminação desta e de todas as fobias impele a maioria das pessoas para comportamentos discriminatórios e injustos. É também a malta do até. “Eu até tenho um amigo negro”. “Eu até tenho um amigo gay”, sempre com aspas. Mas a seguir ao até, vem o mas. E este mas, discrimina sem aspas.

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A lei dos direitos civis (Civil Rights Act) de 1964 e a lei do direito ao voto (Voting Rights Act) de 1965 colocam um ponto final da segregação na lei, federal, concedendo iguais direitos a brancos e negros, e de todas as raças, no acesso às instituições públicas e no direito ao voto, respetivamente. Esta segregação continuou, contudo, na sociedade e, ainda nos dias de hoje, podemos facilmente, perceber a presença de motivações racistas em muitos comportamentos e muitas das diferenças (económicas, sociais, culturais, entre outras).

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E é neste contexto que surge o movimento do chamado politicamente correto, de forma a evitar que a linguagem, que não é só um veículo do pensamento, mas também, e talvez sobretudo, um instrumento que molda o próprio pensamento e o raciocínio (como defendem muitos neurologistas, e filósofos, atualmente), valide e reforce o sentimento de inferioridade que as pessoas vítimas de discriminação sofrem. Este mecanismo, política se quisermos, da linguagem inclusiva do politicamente correto, tem sido muito criticado recentemente por setores da sociedade que argumentam que este politicamente correto foi longe demais, entre aspas novamente, na defesa dos direitos das minorias (mulheres, gays, negros, outras raças e demais discriminados do costume, sem aspas), hasteando a bandeira da liberdade de expressão. Em meu entender, nunca foi, e não é, uma questão de liberdade de expressão. A liberdade existe sempre, mas exige um esforço para incluir e exige também, como não?, um esforço de compreensão dos mecanismo discriminatórios e dos danos que provocam, a todos os níveis. Não há princípio da liberdade de expressão sem entendermos profundamente a injustiça da sociedade em muitas camadas. A nossa presença exige uma atitude perante as questões fundamentais e é essa atitude que está em causa. E há, assustemo-nos muito, um movimento crescente do politicamente incorreto a crescer em toda a parte, sobretudo liderado pelos que receiam perder a hegemonia do homem branco, heterossexual e cis.

Não posso passar por cima de outra questão simbólica deste filme: a IBM. A empresa IBM fornece ao Centro de Computação de Langley um computador mainframe (uma espécie de Ferrari daqueles tempos). Este computador, não humano, vem acelerar drasticamente a velocidade de processamento dos cálculos necessários para o centro (os tais que eram processados pelo pequeno batalhão de computadores de pessoas, mulheres e negras). Devido ao esforço e perseverança de Dorothy Vaughan, a primeira supervisora deste mainframe foi uma mulher negra. Um feito histórico àquela altura. E, celebre-se, ainda hoje em dia a IBM está na crista da onda no que se refere ao combate à discriminação no trabalho, seja em função da raça, da religião, do género, da identidade ou orientação sexual.

Excelentes interpretações de Taraji Henson, Octavia Spencer e Janelle Monáe tornam este filme ainda melhor. Muito convincentes, estas três atrizes merecem grande destaque, pois mostraram que, também elas, são merecedoras dos maiores louros no mundo do cinema.

Hidden Figures é, pois, um filme imperdível pelo manifesto pela igualdade e inclusão. Mostra que mentes brilhantes existem na humanidade, transversalmente a qualquer tipo de discriminação. Mostra-nos como lutar e resistir são a única forma de alcançar mais direitos e mais liberdade para todos. Porque quando a sociedade protege as minorias, todos ganham, a sociedade evolui e o mundo fica um pouco mais justo, contra a invisibilidade.

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Fonte: imagens do IMDB.