Nunca é fácil encontrar reflexos de nós mesmos. Muitas vezes as obras de ficção tornam-se tão (ou tão pouco) complexas na sua construção de personagens que perdem a possibilidade de transposição para outros. Para nós. Porque no final de contas vamos ao cinema e ao teatro para ter vislumbres daquilo que somos. E como pessoas LGBT essa identificação é ainda mais diminuta, com a representatividade das mesmas em ficção ainda muito abaixo do que acontece na realidade.
Tal não é o caso com Encontrar o Sol, novo espectáculo de Ricardo Neves-Neves, em exibição a partir de hoje e até dia 25 de Fevereiro no Teatro Municipal São Luiz. E ao contrário do que aconteceu anteriormente, n’A Noite da Dona Luciana do mesmo encenador, aqui passei de espectador a participante. Não como ator (obviamente) mas como elemento do coro CoLeGaS da ILGA Portugal, convidado via maestro João Henriques para participar em dois momentos do espetáculo em que as personagens se expressam via canção em lugar de monólogo. Mais uma oportunidade única de crescer, individualmente e no coletivo, num palco completamente distinto dos que estamos habituados.
i´
Os ensaios das canções foram céleres e instintivos, mas elas só ganharam corpo e intenção quando assistimos a um primeiro ensaio de cena com os atores e percebemos o que estávamos ali a representar. Numa sala de ensaio do Polo Cultural das Gaivotas, ampla mas totalmente desprovida de cenografia assistimos pela primeira vez a esta tragicomédia de Edward Albee, datada já de 1983. Diz Ricardo Neves-Neves em conversa com o esQrever: “Nos anos 80 estava-se a viver um turbilhão entre a sexualidade e a moralidade e o resultado era uma coisa nova. A homossexualidade era considerada uma ameaça, uma doença. A temática central que (na altura) era este casal gay vejo agora transpor-se para a incompatibilidade entre pessoas e não uma questão meramente de sexualidade”. É centrada num encontro de praia e na relação passada entre Daniel (Luís Gaspar) e Benjamin (Romeu Costa) que, depois de um amor impossível, se casaram, com duas mulheres, Cordelia (Tânia Alves) e Abigail (Rita Cruz). Toda a peça reflete como essa relação ainda os afeta a eles e também aos outros visitantes da mesma praia, sejam eles familiares diretos ou não.
Enquanto via a trama desenrolar-se à minha frente senti a tragédia do quarteto principal a revelar-se. Senti a tragédia daquele amor de outrora tornado em raiva e desilusão de dois homens gay que não puderam ver futuro naquela relação. Perguntei-me também o quanto de realidade existe ainda nestas dissoluções amorosas em favor de uma tentativa de normatividade aos olhos da sociedade. Num mundo pós-Trump temo que possam vir a tornar-se novamente mais frequentes. Que a visibilidade se transforme em fumo e a possibilidade de amar livremente decresça. Novamente e até à anulação das identidades de quem está em jogo. E assim vi-me ali, nomeadamente na personagem de Benjamin que, na impossibilidade de ser adulto livremente na sua identidade e sexualidade, regride à infância, triste e isolado.
Mas senti, talvez mais ainda, a tragédia das mulheres. Esposas de homens que nunca as poderão amar totalmente e como merecem. Com um conformismo ácido no caso de Cordelia ou depressão aguda no de Abigail. A diferença entre um martini na mão ou uma toalha perdida no mar. Mas com um sentimento comum de desarmante solidão “Em profundidade a peça é simplesmente sobre amor. E ausência dele, que não é o ódio mas sim a solidão” diz ainda Neves-Neves. “Existe entre Daniel e Cordelia, cumplicidade. Na cama, na pele, na vida. As relações (dos dois casais) estão no mesmo ponto mas com reações diferentes, a Cordelia tem uma maior consciência do final da relação. Apesar disso sabe que quer estar com ele, que o ama e coloca isso num prisma simples, apesar de ser algo bastante complexo”. Naquele primeiro ensaio nas Gaivotas dei por mim a comover-me ao ponto de me esquecer da minha entrada das músicas e das notas que tinha de cantar para acompanhar o drama de Abigail e de Benjamin. A chorar desenfreadamente depois do desfecho. Pensei que tinha sido da primeira experiência e que seria capaz de controlar e manter a postura minimamente profissional. Mas o nó na garganta regressou nos ensaios gerais já no São Luiz. E percebi que tinha mesmo de ser assim. Que aquela tragédia universal do medo e da solidão jamais seria inócua. Porque não pode ser. Porque não deve ser. “Dúvida é uma palavra muito presente no espetáculo e no texto à qual não procurei dar resposta, mas sim trabalhar nela“.
Esta já é a quarta encenação de Neves-Neves a retratar de alguma forma a temática LGBT. “Encontrar o Sol é a última de um ciclo que começou com leituras de texto na ILGA e depois com duas encenações de Copi, A Noite da Dona Luciana e A Visita Inoportuna. Fizemos também o Hetero de Denis Lachaud e aquela que é, pelos registos que existem, a primeira peça portuguesa com a temática da homossexualidade, Octávio do Vitoriano Braga. (Este) espetáculo é uma tragicomédia. Começa de forma muito luminosa e termina de forma mais escura e pesada. Gostava que as pessoas sentissem esse arco e que no início se divertissem muito e no final partilhassem um pouco daquela angústia da solidão. O que (ela) me faz sentir é valorizar as pessoas que tenho à minha volta todos os dias e pensar o que é essencial. Acho que o teatro, em geral, é sobre isso”. Na mão dele e no corpo e vozes de um elenco absolutamente imaculado e repleto de fulgor e personalidade – que também inclui os veteranos Custódia Gallego, Cucha Carvalheiro e Marques d’Arede e o (jovem) Tadeu Faustino – vemos-nos ali representados. Enquanto pessoas LGBT sim, mas enquanto seres humanos que, independentemente da orientação sexual, vivemos sempre um sentimento devastador de amor. E de solidão. Aí, como em tantas outras coisas, somos dolorosamente iguais.
Bilhetes à venda em Bilheteira Online/São Luiz
ENCONTRAR O SOL
de 17 a 25 Fevereiro
De Edward Albee
Encenação de Ricardo Neves-Neves
Quarta a sábado, 21h
Domingo, 17h30
Mais informações no Teatro Municipal São Luiz
1 comentário