As Micro-Agressões Das Nossas Vidas

Em pleno jantar com namorado e amigo na Graça passava na televisão o jogo da seleção de futebol masculina. Por sinal ganhámos e o Ronaldo portou-se bem. Robalo para um lado, bifes e espetadas para o outro. Durante esse jantar, realmente alheados do jogo, mas não da comida, surgiu na conversa o tema das micro-agressões que recebemos ao longo das nossas vidas. A diferença geracional entre os três fez-nos questionar se havia, logo à partida, uma mudança de experiências entre nós. E a resposta, talvez algo contra-lógica, foi um redundante não.

Porque se é inquestionável o avanço político e até social em relação às pessoas LGBTI, é-nos impossível fugir ao nosso próprio dia-a-dia, à televisão, ao café, à rua, às redes sociais. Somos inundados e inundadas por agressões, não das físicas, não das diretas, mas pequenas agressões. Às dezenas, aos milhares, de raspão, desde o momento em que percebemos a nossa diferença até ao dia em que deixamos de ser o que quer que seja. Às dezenas, aos milhares. Perguntámo-nos, enquanto o Ronaldo marcava mais um golo, se havia algum dia nas nossas vidas em que não tivéssemos sentido esse desconforto. Se algum dia tinha sido limpo desta amargura, deste confronto. Porque, na realidade, todos os dias os sentimos. Às dezenas, aos milhares. E eles surgem vindos de um estranho ou até de um amigo que não se apercebe ou, apercebendo-se, desvaloriza o que disse e se ri, afinal de contas é apenas uma provocação, uma piada. E, sim, talvez possam ser isso tudo, mas depois de as ouvirmos de outras pessoas e noutros contextos, nem sempre as recebemos da melhor forma. É impossível sermos super-heróis a tempo inteiro.

E isso pode levar-nos a uma certa obsessão. Sim, quantas vezes já não ouvimos alguém a acusar-nos de estarmos a dar demasiada importância ao assunto. “Lá vens tu com essas coisas outra vez!”; “Que policiamento!”; “Este lobby gay não tem mais nada para fazer?” Acontece que vivemos com estas pedras nos sapatos desde crianças e elas nunca realmente desaparecem. Há quem ganhe mais ou menos calo e não nos iludamos que vivemos todos e todas com alguma pedra no sapato. Mas a razão de tal desconforto ser por aquilo que somos abre-nos a pele, eventualmente penetra-nos a pele. E nesse dia voltamos a sentir a merda da pedra como se fosse no primeiro dia que ela debaixo no nosso pé se colocou.

Já de talheres arrumados nos pratos, surgiu a questão: “Consigo dar um beijo espontâneo ao meu namorado num espaço público?” Dificilmente o conseguiria fazer, dificilmente o conseguiria fazer sem que este se tornasse de alguma forma num gesto político, para algumas pessoas até uma afronta. Fomos percebendo desde miúdos e miúdas que certas coisas – olhares, gestos – eram mal recebidas, eram tabu, eram proibidas. E por isso, até um simples beijo entre dois homens ou duas mulheres leva consigo uma carga simbólica para lá daquele que possa ser a sua primeira razão de ser. E assim ganhámos ao longo das nossas vidas consciência clara de todo esse simbolismo, de todo esse peso que um beijo pode carregar. Ganhámos consciência do quão politizados são os nossos gestos. Também às dezenas, aos milhares. E isso, ao fim de um tempo, pode tornar-se absolutamente esmagador.

Talvez por tudo isto sentimos a necessidade de agregação, dos espaços seguros, das amizades próximas como a deste jantar, para que consigamos viver, por vezes sobreviver, de forma a que um beijo seja realmente só isso, um beijo. Porque precisamos, mesmo que dado de soslaio, que seja apenas isso. E nada mais.