O que estamos a fazer aos nossos rapazes?

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Faço um tendu para saudação.

Há cerca de quatro semanas assisti a uma gala de apresentação do Leiria Dance Festival, no Centro de Artes e Espetáculos da Figueira da Foz, a propósito da participação de uma sobrinha minha, de 15 anos (completos no dia anterior), na classe da Dança Contemporânea, com escolas de todo o país e alguns grupos vindos do estrangeiro. Apreciei o espetáculo com atenção e à medida que o tempo ia passando e os vários grupos iam deslizando e dançando pelo palco, a minha curiosidade e estupefação iam crescendo. O desequilíbrio de género era gritante, isto é, saltava à vista, para ser mais apropriado no contexto da dança.

Interessante foi tomar consciência das proporções, coisa que sempre faço, por defeito de nascença. Neste caso, no que toca às proporções de género, se a proporção não era famosa para os grupos dos mais pequenos, digamos até aos 10 anos, havendo em média cerca de 1 rapaz por cada 6 ou 7 raparigas (dados não oficiais, aproximados pelas minhas sinapses), já nos grupos de jovens adolescentes, tipicamente acima dos 10 e até aos 16 anos ou 17 anos, a proporção descia vertiginosamente para os escassos 1 rapaz por cada 20 ou mais raparigas. Alguns grupos apresentaram-se com 1 rapaz e 30 ou 40 raparigas. Mais do que um grupo. Outros grupos, alguns deles grandes, apresentaram-se exclusivamente com raparigas.

Pergunto-me, o que estamos nós a fazer aos nossos rapazes? A sociedade acha mesmo que a dança, seja clássica ou contemporânea, é só para raparigas?

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Faço uma pirueta e paro no mesmo ponto.

Tenho mais sobrinhas. Uma outra, com quase 6 anos é uma criança muito enérgica e que adora tudo que seja cor de rosa e o universo associado ao género feminino. Mas não adora só isso. Quis ir praticar futebol, em vez de ballet. Então os pais levaram-na a uma escolinha de futebol para se inscrever e começar a praticar a modalidade com crianças da sua idade. Não foi assim tão fácil, afinal de contas. Ao chegar ficou amedrontada com o facto de só haver rapazes e eles, por outro lado, não a receberam no grupo, isto é, não a reconheceram enquanto uma deles, por não entender como era possível uma miúda ir jogar com eles (não havia turmas só de raparigas). A desconfiança, por um lado, e a intimidação, por outro, foram tais que a coisa não se deu e ela já não fala em ir praticar futebol.

Pergunto-me, o que estamos nós a fazer também às nossas raparigas? A sociedade acha mesmo que o futebol é só para rapazes?

Ora, a sociedade não é personificável e, por isso mesmo, não acha nada. Quem acha são as pessoas. E as pessoas, pelo menos muitas, demais, acham isso, infelizmente.

Agora vou em pontas.

Se a pressão sobre as raparigas, e as mulheres adultas, e as suas consequências ao nível da auto-estima e das oportunidades de vida, têm sido debatidas, e bem, hoje interessa-me explorar mais a pressão e as suas consequências sobre os rapazes e homens adultos.

Conheço relatos de rapazes vítimas de bullying homofóbico por gostar de e praticar bailado, ou dança clássica ou contemporânea, motivo que leva a esmagadora maioria dos poucos que já ousaram inscrever-se, sejam eles homens gay ou não, a desistir dessa expressão artística que é essencialmente corporal. Como já várias vezes se tem dito, a violência homofóbica não tem como alvo apenas os gays e as lésbicas, mas também todos aqueles que são percecionados como tal. Podemos dizer que a violência homofóbica tem como alvo todos aqueles cuja expressão de género não é igual à do seu género aparente. Esta violência, com que todos os seres humanos, sem exceção, têm contacto desde a sua nascença, é profundamente penalizadora da liberdade individual, para se ser, para se criar, para se exprimir. Esta limitação é imposta desde cedo à maioria das crianças que vão aprendendo a rejeitar determinados comportamentos, anseios e posturas e vão aprendendo a adotar um certo (o significante ‘certo’ é talvez desadequado … melhor seria dizer esperado) comportamento, em detrimento daquilo que poderia ser a sua verdadeira expressão individual.

Nada é mais forte do que o corpo. O corpo é mesmo o ponto mais incontornável desta discussão.

“Y además, ¿por qué debería importarme la paz si mi cuerpo es una batalla?”

in “El año de Ricardo”, Angélica Liddell

É a expressão corporal que incomoda. É a interação mútua dos corpos dos homens ou dos corpos das mulheres que incomoda. É a expressão sexual que incomoda. O corpo incomoda. E as reações viscerais de homofobia têm génese nesta projeção do corpo, as viscerais repito, que as há em muitas outras formas. Noutro texto que escrevi já mencionei a importância que o corpo feminino tem para o homem gay e na rejeição que o homem hetero faz dessa importância. Na verdade, creio que para a maioria dos homens heterossexuais a repulsa que sentem desta possibilidade de se projetarem no sexo feminino demonstra esta enorme incapacidade de lidar com as suas projeções corporais. Qualquer homem gay já passou por esta desconstrução do corpo, processo esse que é psicologicamente doloroso e potencialmente perturbador mas que, se bem consolidado, dá ao homem uma liberdade excecional (recordo que neste texto interessa-me, sobretudo, analisar a perspetiva vista deste ponto).

É, pois, expectável, que os homens que procuram a expressão corporal mais livre, artística sobretudo, como no caso da dança, sejam imediatamente conotados, isto é, percebidos, como homens gay. Ficam de fora outras formas de expressão corporal menos artísticas e mais desportivas, mais conotadas com um universo masculino (discreto?) heterossexual (viril?). É isto, ou não, uma prisão para os homens?

Este tema do corpo, não se esgota por aqui, obviamente, mas este último ponto leva-me a uma questão que ando há algum tempo para explorar: o tema do homem enquanto vítima do preconceito, vítima da pressão social, vítima da sua própria hegemonia social. Vítima do privilégio.

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Relaxo em grand plié, com a ajuda da barra.

Vejamos alguns exemplos de frase equívocas, inequivocamente equívocas.

Um homem não chora. Um homem grita e fica furioso.

Um homem não se exprime corporalmente de forma delicada. Um homem tem movimentos firmes e abruptos.

Um homem não dança e não baila. Um homem joga.

Um homem não aprecia homens, nem sequer tem opinião. Um homem tem desejo de mulher.

Um homem não rejeita sexo. Um homem é sempre ávido de obter sexo.

Um homem não é presa. Um homem é predador.

Um homem não mostra fraqueza. Um homem é sempre forte, ou mostra-se sempre forte.

Felizmente que esta estrutura sexista e preconceituosa da sociedade, ali caricaturada, tem evoluído paulatinamente para uma visão mais abrangente e menos preconceituosa, em muitos círculos sociais (uma bolha pra mim … uma bolha pra ti … olá olá). Porém, este machismo e esta visão do homem estão ainda muito enraizadas em toda a sociedade. E, tal como é verdade que todos os seres humanos contactam com a homofobia desde a nascença, também é verdade que contactam com estes valores deturpados do que é ser homem (e, claro, na mesma medida, mas em sentido diferente, com os valores do que é ser mulher). E é algo estranho, e cruel, perceber que esta estrutura deformada do homem é ainda muito comum (provavelmente ainda a regra, infelizmente) entre os casais de homens gay – pois há o asco do “homem da relação” – que faz deles ao mesmo tempo vítimas e agressores. Voltaremos aqui.

Voltando um pouco atrás, em pontas, a manutenção do privilégio do homem face à mulher, não há como negá-lo, faz-se da afirmação desta diferença e do reforço da tensão entre homem e mulher.

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E agora faço um enérgico grand jeté.

Há um movimento subliminar de resistência à afirmação do feminismo e da igualdade de género que mina as mentes dos incautos, dos ignorantes e dos mais perversos. As formas de absorção e exteriorização dos princípios preconizados por estes movimentos (de que tanto se tem falado a propósito da reafirmação à escala global de uma certa narrativa do politicamente incorreto) são diversas e vão desde o fanatismo e radicalismo (vejamos os recentes ataques, aparentemente em crescimento, a mulheres, ou gays, uma vez que homofobia e sexismo partilham da mesma génese), até um sexismo moderado e escondido, munido de falsos argumentos, e disfarçado com laivos de intelectualidade urbana (vejamos as reações de alguns cronistas de jornais famosos à divulgação de um vídeo de uma alegada violação de uma rapariga menor).

O medo da perda do privilégio é, pois, acredito, o que alimenta este terrorismo machista. As mulheres são percecionadas como inferiores, mas agora também, crescentemente, como ameaça ao status quo e, como tal, são agora alvo de violência (uma violência diferente daquela a que sempre foram, e estão, sujeitas). Repito que esta violência é muitas vezes não física, velada e, nalguns casos até, inconsciente.

Do lado desta narrativa do politicamente incorreto, estão também um número crescente de homens gay, como já disse, que, sendo eles próprios vítimas deste terrorismo machista, se colocam na posição de agressor. As redes sociais estão a rebentar com estes posts e comentários, substituindo-se, aquilo que deveria ser opinião, com mera verborreia de ódio. Este tema, que por si só merece uma profunda reflexão, foi muito debatido recentemente a propósito do crescente número de gays votantes em radicais de direita, como Trump ou Le Pen.

Por fim, piruo (faço uma pirueta) com base a 180 graus (pi radianos, que se fossem Celcius, já tinha derretido).

Ligando com o tema do início, a tensão dicotómica deste modelo de género, fundeado num privilégio do masculino, com um movimento recente, aparentemente radicalizado ou em vias disso, vai sempre vitimizar também o homem, cortando-lhe à nascença as asas do livre pensamento e, sobretudo, as asas da livre expressão corporal. Disclaimer: obviamente que sendo vítimas do próprio veneno, não estão desculpados nenhuns crimes de ódio ou ataques à igualdade de género.

Precisamos de mais exercícios teóricos (que virão a práticos com o tempo) de disrupção dos modelos de género e mais discussão sem medo de perda do privilégio. Nenhum homem é substancialmente livre se não se puder expressar desamarrado dos papéis de género, sejam eles na dança, ou na música, ou no desporto, ou no sexo. A humanidade (permitam-me que a personifique um nadinha) não pode, simplesmente, dispensar metade da população.

Os coreógrafos precisam de rapazes na dança. Os coreógrafos não precisam de rapazes na dança. Precisam de pessoas, todas elas e todos eles.

Fontes: Pinterest ‘Explora Aula De Balé, Aula De Dança e outros!’, ‘Boys ! Ballet Boys ! Uh huh !’ e ‘Ballet’.


13 comentários

  1. Isto de se continuar a atribuir géneros às coisas/actividades é do mais prejudicial que há, há sempre quem se sinta desenquadrado. E ainda há quem se rebele contra a luta para que estes esteriótipos acabem, dizendo que não é por se deixar de atribuir coisas aos géneros que se deixam de fazer as coisas, que é preciso haver dois géneros distintos, etc. Acredito que isto vá mudando com as próximas gerações, porque antes e na minha geração sempre foi tudo muito cor-de-rosa e azul. Espero que nos deixemos disso.

  2. Precisamente. Este processo de binarização de género é muito prejudicial. Esperemos que com o tempo vá melhorando. Acredito que sim.

  3. Será que as mulheres são percepcionadas como inferiores? Ou essa percepção não resultará também da necessidade profunda da negação do seu poder, tal como muitos sentimentos homofobicos tão dessiminados? Por que será que são as próprias mulheres um dos maiores transmissores do machismo? Parabéns pelo texto e pelas imagens!

    1. Olá Matilde. Sim, é precisamente isso que pretendi dizer. A percepção de uma suposta inferioridade (que dominou o passado, sobretudo para os distraídos e incautos, talvez não para os opinion makers masculinos) está a ser substituída por medo da ameaça que o verdadeiro poder da mulher constitui. Essa é, para mim, uma alteração profunda dos tempos modernos (embora subliminar) que permite compreender a razão dos crimes de ódio a grupos de mulheres. As alterações do status quo gera resistência até nas mulheres, e podemos observar bem que, como dizes, elas são um dos principais veículos de transmissão do machismo. Elas próprias habituaram-se a ser vistas como objetos ou como dependentes dos incumbentes masculinos, agora mais ameaçados, e bem. Este texto uma resposta ao teu desafio enviado há uns tempos.

  4. Antes de mais agradeço a resposta ao desafio! A única dúvida que me suscita é se as mulheres são esses veículos por se verem como objetos ou dependentes, ou antes na perpetuação do seu poder que de alguma forma é muito mais posto em causa pelas filhas mulheres. Mas estou certa que não há apenas uma resposta e como dizes há muita desconstrução a fazer, a começar pelos operadores que usamos. Obrigada Nuno!

  5. Adorei o texto pela sua profundidade e qualidade literária.
    Uma questão que sempre me preocupou, a escassez de rapazes nas actividades relacionadas com expressão corporal.
    No Teatro por acaso não tenho sentido esse “problema”, mas a questão aqui brilhantemente levantada essa sim é gritante.
    E tenho consciência da pressão exercida pela sociedade sobre os poucos meninos que abordam esta tão bela arte.
    Uma triste realidade na nossa sociedade que tem características muito próprias….

      1. Boa tarde Sérgio. Obrigado pelo seu comentário. O corpo e a sua expressão cultural são capazes de retirar muitas pessoas do sério, por boas razões, mas também por más. Não faz sentido limitar os nossos rapazes.

  6. Muito triste e muito difícil o que se passa na dança em Portugal. O meu filho de 9 anos foi um dos que participou nesse concurso de que fala. Realmente nos mais pequenos há alguns e é verdade que vão rareando com o aumento da idade. É muito difícil para estas crianças lidar com o preconceito. O meu filho só está mesmo feliz quando está no ballet, pois aí sente-se livre e ele mesmo, é igual a todos os outros e outras. Na escola é sistematicamente chamado de “menina”, “afonsina bailarina”. Eu penso muitas vezes de onde é que isto vem, pois as crianças não podem nascer assim, tem de vir de casa, têm de ser os pais os culpados. Ele ainda é uma criança, vai ouvindo o que eu digo, vai suportando todo este preconceito, mas quando for adolescente irá aceitar, irá conseguir pôr a paixão pela dança acima do bulling do dia a dia?

    1. Olá Clara. Obrigado pelo seu comentário. Entendo em absoluto o que diz. Essa estrutura homofóbica da sociedade toma conta até das crianças mais pequenas, levando-as a ser muito cruéis com quem quer ser livre e feliz, independentemente da sua orientação sexual (se é que já existe nessa idade) e a despeito da vontade livre na expressão corporal. Faz muito bem em apoiar o seu filho e em querer vê-lo feliz. Esse apoio não tem preço e ele sairá mais forte, desejavelmente, deste embate com a crueldade. E mais livre … pela desconstrução do corpo e do exercício da liberdade.

    2. Olá Clara! Tomo a liberdade de sugerir verem o filme Billy Elliot e a página que já devem conhecer do João Pedro Paixão, bailarino de Braga de 11 anos, onde encontra várias entrevistas com a família e o superar dos preconceitos, com ele bailarino e a irmã futebolista. Felicidades!

  7. Parabéns pelo texto. Muito bem escrito, que me fazia chorar e rir quase ao mesmo tempo. Tudo que mencionou está inequivocamente correto. Continue com a luta. Um abraço.

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