Tom of Finland (filme) ou o encanto do mastro

Estreia hoje o filme Tom of Finland, sobre a vida (ficcionada) e a obra do artista conhecido pelo mesmo nome, pseudónimo de Touko Laaksonen (1920 – 1991). O filme, assinado por Dome Karukoski, é um dos aguardados de 2017, não só pelos que são amantes da arte de Tom, mas também por aqueles que esperam ver neste filme a proeza de se transformar um tema enraizadamente misógino, dando-lhe uma perspetiva mais inclusiva. Este último desafio não é pequeno e foi, creio, bem conseguido até certo ponto. Lá chegaremos.

Vamos agora um pouco ao enredo, sem estragar a surpresa.

Laaksonen (Pekka Strang) é um tenente, oficial de baixa patente, no exército finlandês, na segunda guerra mundial. Serve na frente oriental, defendendo a sua pátria contra o invasor russo. Na frente de guerra, há momentos de descanso, em que alguns soldados se envolvem sexualmente entre si, sempre secretamente. Uns justificar-se-ão com o facto de estarem longe das suas esposas, ou mulheres-commodity em geral, outros não se darão ao trabalho de ter ou pensar numa justificação que não seja a do puro prazer. A guerra termina e Laaksonen regressa a Helsínquia onde trabalha como desenhador publicitário. Partilha casa com a sua irmã Kaija (Jessica Grabowsky), figura central na vida de Laaksonen, nem sempre bem-vinda ou de trato fácil.

Muito fechado sobre si mesmo, Laaksonen é um homem atormentado com a guerra, que não resiste à pulsão sexual por outros homens, mantendo os “passeios noturnos” pelo parque. Num destes encontros furtuitos conhece Veli (Lauri Tilkanen), cujo diminutivo é Nipa, e que viria a reencontrar mais tarde. Laaksonen, perturbado pelo medo e pela multiplicidade de sentimentos contraditórios, onde, contudo, não parece existir a culpa, esconde-se no seu universo doméstico, fechado no quarto, envolto numa nuvem de fumo de tabaco, onde produz os seus primeiros e sugestivos desenhos de homens e da intensa e gráfica sexualidade entre eles, ainda em fase embrionária, porém.

A lógica de cruising nos parques ou casas de banho em Helsínquia muda em relação aos tempos da guerra e Laaksonen, sentindo-se pressionado, resolve viajar para Berlim, onde também espera mostrar os seus desenhos. Alguns golpes sofridos e desilusão à mistura, fazem-no regressar a Helsínquia e ao seu universo fechado e mais escondido. Intensifica a produção de desenhos cujo detalhe vai gradualmente aumentando e aos quais Laaksonen dedica cada vez mais atenção, nomeadamente às particularidades dos atributos do corpo masculino – lábios e glúteos cada vez mais proeminente, peito musculado e entumecido, pilas de grande envergadura, gigantes dir-se-ia, e todo um universo fetichista que orbita à volta do leather, das motos, dos marinheiros e demais profissões “masculinas”.

Nipa reentra na vida de Laaksonen, e também de Kaija, criando-se uma espécie de tensão mútua que se manteria por muito tempo. Mais tarde, Laaksonen encontra espaço para a divulgação dos seus desenhos na California, criando, talvez sem ter plena consciência disso, um enorme movimento de fãs e admiradores que requerem a sua presença e que alimentam um universo fetichista de proporções mundiais, sempre com uma lógica de grande masculinidade. De referir, ainda, uma breve passagem do filme, pouco explorada, pelo tema do HIV e do preconceito que surgiu (melhor dizendo, que se intensificou) contra os homossexuais, culpabilizados pela epidemia, e contra Tom of Finland, dado o cariz homoerótico e, também, pornográfico, das publicações com os seus desenhos.

A leitura do filme, do fenómeno e da misoginia

Perante este tema do Tom of Finland as opiniões dividem-se, às vezes de forma muito visceral. Que leitura fazer, aos olhos de agora, sobre os desenhos hiper masculinizados de Tom of Finland? Qual o papel que tiveram os seus desenhos no ativismo pela igualdade dos direitos de gays e na mudança das mentalidades? Continua a ter esse papel? Qual a relação com a igualdade de género e, ainda, a visibilidade de lésbicas? Como interpretar o universo profundamente falocêntrico que inspira?

Laaksonen esboça no papel uma imagética inspirada numa visão do masculino, e que ela própria inspiraria e inspira ainda hoje, que hoje o feminismo, e bem, combate (eu incluído). Esta visão do homem, gay ou hetero, esquiça os traços da masculinidade na força, na exuberância (não confundir exuberância com histrionismo), na dominação e no combate, entre uma miríade de outras características “masculinas” com que nos habituamos a conviver desde nascença. Esta visão estereotipada do masculino é profundamente misógina e assume, como ponto de partida, a superioridade do homem em relação à mulher. Já sobre isto escrevi aqui (masculinos discretos) e aqui (homem da relação). Este enorme equívoco é a base de inúmeras subculturas “masculinas”, tanto para homens heterossexuais, como para homens homossexuais. Alguns exemplos destas subculturas, no caso do universo gay, incluem o movimento ou estética bear, leather e outros mais ou menos fetichistas que, invariavelmente, excluem prontamente as mulheres, colocando-as na absoluta invisibilidade. Não é meu intuito neste artigo aprofundar as diferenças e semelhanças entre estas subculturas, o que quer que isso seja, mas este é um ponto incontornável nesta temática do Tom of Finland.

Contextualizados que estão os desenhos hiper masculinizados de Laaksonen, interessa ler nas entrelinhas do filme de Dome Karukoski. E é aqui que, do meu ponto de vista, se percebe que a mensagem final deste enredo é muito mais inclusiva do que aquilo que estarão dispostas a aceitar as legiões de fãs que eventualmente verão o filme (os tais que enchem os locais das subculturas que mencionei). Há, ao longo do enredo, escrito por Dome Karukoski e Aleksi Bardy (o argumento é assinado por mais 5 pessoas), um paralelo entre a vida pessoal de Laaksonen (esta é uma obra biográfica livre) e a sua arte, que seguem caminhos bem distintos e, até certo ponto, antagónicos, se pensarmos nos tão conhecidos (e irritantes) corolários de exclusão que se serviram dos desenhos de Tom of Finland para criar as suas bases e praticar a misoginia, e consequentemente a homofobia, que lhes são tão orgulhosamente caras.

É, pois, muito revelador ver o percurso pessoal de Laaksonen, quando das profundezas de um armário agrilhoado (e envolto numa nuvem de fumo de tabaco, qual manhã de nevoeiro!), vai descobrindo gradualmente a força pessoal que sempre recupera ao afirmar a sua identidade, ao se tornar gradualmente mais visível, não só na California, de onde partiram alguns dos principais movimentos de luta a ativismo pela igualdade, mas também na sua terra natal, muito mais conservadora e onde, até bem tarde, a homossexualidade era crime punível com pena de prisão. Laaksonen faz este percurso pessoal contra o medo e a sua homofobia internalizada, criando, aos poucos, espaço para a visibilidade (tema central no filme), muito puxado por Nipa, personagem incontornável da sua vida, muito mais livre de preconceitos e dessa homofobia “masculinizante” (ou não fosse ele um bailarino habituado à livre expressão corporal) e, ao mesmo tempo, muito diferente dos modelos que serviram de inspiração para os desenhos de Laaksonen.

A construção do filme Tom of Finland está muito bem arquitetada, desde o arco do enredo e do paralelismo entre a vida pessoal de Laaksonen e a sua arte, à exploração da homofobia contra os homossexuais e a própria homofobia internalizada nos gays, profundamente misógina. Karukoski exprime, mostrando elevado domínio da conceção fílmica, o ambiente perturbado de Laaksonen, algo obsessivo, jogando com a toada rítmica dos sempre presentes violoncelos e do álcool e, principalmente, do tabaco. Ainda a presença, sempre inesperada, mas regular de Kake, a sua principal personagem artística, permitem adensar a atmosfera criativa e conturbada de Laaksonen.

Por fim, Tom of Finland é um filme que vale a pena ver, sobretudo se formos capazes de olhar, todos e todas, para além das formas apelativas e provocantes, o grande equívoco que é a misoginia e a cultura da hiper masculinidade. Para todos e todas os que não consigam olhar para este equívoco e entendê-lo, Tom of Finland será apenas e tão só um filme masturbatório que irá reforçar o estereótipo e o preconceito, que irá atrasar as mentes já de si ultrapassadas.

 

Nota: Para desilusão minha, tentei encontrar mais imagens do estilo Tom of Finland, não necessariamente desenhadas por Laaksonen, com mulheres e não encontrei nada. Só a que está acima. Very bad!

Fonte: Imagens de IMDB e www.worldoftomoffinland.com.

 

Por Nuno Gonçalves

Opinião expressa a título individual.

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