Somos mesmo anti-naturais, doentes e imorais? – um mini-manual de contra-respostas

Demorei uns dias a digerir os comentários e as reacções às infames capas da revista Cristina. Não me chocou o conteúdo dos comentários, porque não é algo que nunca tivesse ouvido, mas chocou-me o número de pessoas que os partilham. Pessoas com sorrisos simpáticos no Facebook a desejar que eu, aliás, que nós, morrêssemos, emigrássemos ou fôssemos internados.

Acusam-nos de sermos anti-naturais, doentes e imorais. De sermos pessoas sujas e indignas.

A raiva foi a emoção que mais prevaleceu, mas o choque também. Apetecia-me trucidar cada comentário num português vergonhoso com perguntas retóricas, recomendações de gramáticas portuguesas e estudos científicos. Achei que seria mais saudável escrever neste espaço.

Natureza

Há duas formas de desmistificar este argumento extremamente frágil:

  1. O mais fácil é relembrar que há inúmeras espécies que apresentam emparelhamentos do mesmo sexo e que o “natural” é muito variável. Os chimpazés-pigmeus, por exemplo, têm comportamentos bissexuais incutidos no fabrico da sua sociedade. Um casal de abutres machos também já foi aqui abordado. Os caracóis são hermafroditas e podem engravidar outro caracol trocando espermatozóides.
  2. O mais complicado, e o que gosto mais de fazer, é pôr em causa a aproximação estrita do natural ao moral. Porque é que o que é natural é moral? Se a homossexualidade fosse, de facto, uma escolha, tudo mudaria de figura? Como pan/bissexual, eu não escolhi apaixonar-me pelo meu namorado, mas tinha a hipótese de evitar esta relação para namorar com uma mulher. A opção que fiz faz de mim menos digno de respeito?

Tudo no ser humano é artificial: a linguagem, a música, os computadores, a medicina tradicional, as roupas, as casas. Tudo. E, quanto a escolhas…

Ser religioso?

Escolha

Ser de um clube de futebol?

Escolha

Ser afiliado a um partido?

Escolha

Vão acusar-me de lavagem cerebral de crianças quando há, em Portugal, bebés que recebem cachecóis de clubes de futebol mal nascem?

Saúde

A homossexualidade esteve, de facto, listada enquanto doença entre 1948 e 1990 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O DSM, livro de psiquiatria americano, já tinha retirado a homossexualidade da lista de doenças em 1973.

Actualmente, é um facto indiscutível que a homossexualidade não é uma doença. Tanto para a própria OMS, como para o colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, a American Psychological Association, a American Psychiatric Association e a Royal College of Psychiatrists. As mesmas organizações e muitas mais são, ainda, contra o uso de terapia de reconversão.

Algo muito diferente é afirmar que há maior índice de suicídio e de outras pertubações mentais em pessoas LGBT. De facto, há maior fragilidade em comparação com pessoas heterossexuais, sendo que pessoas bissexuais são especialmente afectadas. Apesar disso, é sabido que isso decorre do ambiente em que as pessoas LGBT se inserem, por serem uma minoria cronicamente discriminada (1 e 2), e que intervenções inclusivas e positivas para pessoas LGBT reduzem essa morbilidade (3 e 4).

Assim sendo, consigo afirmar com toda a segurança: nós não estamos doentes; vivemos é numa sociedade doente, infectada pela homofobia e misoginia.

Moralidade

Na sociedade heteronormativa em que vivemos, há uma condenação moral em várias vertentes; na minha perspectiva, essencialmente, em 3: (1) Religião, (2) Família e (3) Nojo.

1 – Religião

Não vou alongar-me na condenação religiosa da homossexualidade porque, infelizmente, é algo extremamente comum. Houve, na História, culturas com perspectivas muito diferentes quanto a relações entre pessoas do mesmo sexo e com géneros muitos mais diversos do que a dicotomia homem-mulher actual. Hoje em dia temos também igrejas cristãs Protestantes nos EUA, Escócia e países da Escandinávia a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

Apesar disso, em Portugal prevalece a cultura da Igreja Católica. Como contra-resposta, não vou entrar em discussões sobre a existência de Deus e sobre a análise da Bíblia; irei apenas apelar à separação da Igreja e do Estado.

Vivemos num país laico, em que o Estado não deve (nem pode) orientar as cidadãs e os cidadãos por princípios religiosos. Assim sendo, argumentos religiosos com base em citações de qualquer livro sagrado não são válidos num debate para tod@s. Mais: a religião de um/a não deve ter o direito de discriminar ou de se impor na vida de outr@, uma vez que é algo que dever ser visto como uma escolha pessoal. Cada um deve ser livre de viver como quer dentro da legalidade da lei, que deve ser igual para tod@s.

Se isto não resulta, pergunto apenas: quantos católic@s portugues@s não fazem sexo antes do casamento? Ou estão divorciad@s? Ou usam anticoncepcionais? Ou acumulam riqueza?

2 – Família

A noção da família heterossexual com a sua prole é um dos argumentos mais usados contra pessoas LGBT e contra o igual reconhecimento das suas uniões e/ou famílias. Enumerando os principais argumentos e a sua contra-resposta:

  • “O Estado deve fomentar uniões que produzam ‘naturalmente’ descendência”

Isto quer dizer que homens e mulheres heterossexuais inférteis não deveriam ser autorizados a casar-se? E as mulheres pós-menopausa? E casais heterossexuais que não querem ter filhos? O casamento deveria ser condicional até haver descendência?

  • “Não se deveria chamar casamento. Casamento é entre um homem e uma mulher.”

Qual é a definição de casamento que estão a usar? A definição religiosa? Então, mas não há casamento civil? Eu tenho lá culpa de que não tenham dado outro nome ao casamento civil. E não vivemos num Estado laico?

  • “É uma questão cultural. Querem mudar o que sempre existiu.”

O casamento foi sempre entre um homem e uma mulher? E nativos americanos que tinham uniões oficiais entre pessoas do mesmo sexo? E evidências de casais homossexuais noutras culturas?

Mais: o “sempre” e a “tradição” são argumentos lógicos para alguma coisa? Com eles não teríamos abolido a escravatura e permitido o voto das mulheres.

  • “Uma criança precisa de um pai e de uma mãe”

Bem, de acordo com a Ordem dos Psicólogos Portugueses:

É consensual que não existem diferenças entre as crianças provenientes de famílias homoparentais e as crianças provenientes de famílias heteroparentais no que diz respeito a aspectos desenvolvimentais, cognitivos, emocionais, sociais e educacionais. Também os estudos dedicados às competências parentais, à saúde mental, à capacidade para estabelecer laços de vinculação e ao ajustamento relacional entre casais homossexuais apontam, na generalidade, para a não existência de diferenças significativas em comparação com pais e mães heterossexuais.

Acrescento ainda: se uma criança precisa mesmo de um pai e de uma mãe, porque era permitida a adopção de crianças por pessoas singulares? Se um cônjuge morrer num casal heterossexual, a criança dever ser retirada porque deixa de ter um pai e uma mãe?

Mais: é no interesse de qualquer criança estar numa instituição? Não se trata de um direito de adoptar apenas, mas sim no verdadeiro interesse de crianças sem uma família.

3 – Nojo

Chegámos ao nojo. Ao ponto mais irracional e ao argumento menos lógico usado. Como já aqui discuti, o nojo não está errado ou certo, a meu ver. Limita-se a existir.

Não julgo uma pessoa que tem nojo de me ver beijar o meu namorado. É algo que encontro em muitos amig@s e familiares meus, por muito pro-LGBT que sejam. Não há que ter vergonha em ter nojo, porque é uma reacção irracional e profundamente interna. E não é muito discutível. Eu tenho nojo de couves de Bruxelas, por exemplo e não é por me dizerem que eu não tenho e que não posso ter, que o deixo de sentir. Isso não quer dizer, obviamente, que não devemos reflectir sobre os nossos “nojos” para garantir que não estão baseados em preconceito ou ignorância.

Contudo, há que ter vergonha em estabelecer argumentos, especialmente condenações de outr@s, com base no nojo. Qualquer argumento com base nisso é irracional, profundamente subjectivo e, sinceramente, pouco inteligente.

Por exemplo, perco todo o respeito por alguém quando tenta justificar que não gosta de homossexuais por causa do sexo anal, geralmente referindo-se a dois homens. Umas notas em relação a isto: (1) o sexo anal pode ser praticado por qualquer pessoa, visto que todos temos um anús; (2) há casais heterossexuais e de mulheres que praticam sexo anal; (3) há casais de homens que não praticam sexo anal.

Outras pessoas referem que é o nojo que nos impede de agir noutros comportamentos extremamente tabu e ilegais, nomeadamente incesto, pedofilia e bestialidade. Acho inaceitável que se compare uma relação consensual entre duas pessoas adultas e conscientes com fazer sexo com um familiar, uma criança ou um animal. Isto é lógico, sequer? Há inúmeros argumentos lógicos, não apoiados em nojo, para denunciar qualquer um destes comportamentos:

  • Incesto: como garantir que alguém que se envolva com um progenitor consente verdadeiramente sem ser levad@ a isso por anos de manipulação incutidos na sua própria educação? Quais as consequências para a dinâmica familiar d@s envolvid@s com essa relação? Depois de uma relação incestuosa terminar, mantêm-se os laços familiares ou têm de ser redefinidos? E, para relações heterossexuais, o que fazer com o risco acrescido de doenças genéticas?
  • Pedofilia: uma criança é incapaz de perceber as consequências de um ato desse tipo e é incapaz de consentir. Que raio de argumento existe para justificar que uma relação entre um adulto e uma criança será alguma vez uma relação com igual divisão de poder e consciência? A evidência aponta, além disso, para consequências extremamente nefastas para o bem-estar e correcto desenvolvimento de uma criança abusada sexualmente.
  • Bestialidade: alguma vez um animal com um nível de consciência muito diferente de um ser humano e sem uma linguagem comum é capaz de consentir?

O nojo que sentimos dever ser visto como algo primitivo e pessoal e não como uma bússola moral a impor numa sociedade.


No final deste longo texto, à pergunta “Somos mesmo anti-naturais, doentes e imorais?”, posso responder, de forma convincente e lógica:

NÃO!

Fonte: Wall Street Art in a public place, por Chris Barbalis (imagem)