O orgulho dos marchões no World Pride Madrid 2017

Fez no sábado passado uma semana que decorreu na capital espanhola o World Pride 2017, simultaneamente o Euro Pride 2017 e o Pride de Madrid. Estiveram quase 3 milhões de criaturas nas ruas daquela cidade, repleta de orgulho e das cores da bandeira rainbow, símbolo de liberdade, de igualdade e do orgulho lgbt, ou como é comum ser representado em Espanha, símbolo da população lgtbqa.

Será mesmo? Havia todo o orgulho?

Arrisco-me a dizer que sim … que estava lá todo o orgulho, mas não a verdadeira igualdade, yet.

As excelentes reportagens, foto-reportagens, testemunhos e opiniões sobre o World Pride do Pedro e do Nuno podem ser vistas aqui e aqui. Dizem, por palavras e fotos, quase tudo o que há, e houve para dizer, dada a comoção espontânea de que tod@s fomos acometidos, incluindo o que quero escrever neste texto. Mas como os grandes combates se ganham também pela afirmação dos valores as vezes que forem necessárias para que as coisas passem para o lado certo da história, creio que posso ser ainda um nadinha mais insistente para reafirmar o que tenho vindo a afirmar diversas vezes.

A constatação mais óbvia é a de que a representação das mulheres era escandalosamente mais reduzida do que a representação dos homens. Antes de refletir um pouco, vamos primeiro a uma breve descrição do tema, essencialmente construída com base na minha própria experiência e perceção vividas em Madrid, limitadas, portanto.

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Se pensarmos na Marcha do Orgulho propriamente dita, isto é, no manifesto político ali afirmado, veementemente, por centenas de milhares de pessoas, vindas de todo o mundo, homens e mulheres, cis e trans, e não binários, então creio que, ainda que sub-representadas, as mulheres estavam ainda assim mais próximas da paridade. Apesar disso, creio que a realidade estava ainda longe da igualdade pois, estimativa minha, dos “marchantes”, onde me incluí, talvez um terço seriam mulheres, cis ou trans. Esta proporção é radicalmente distinta da proporção de mulheres a “marchar” no longo corso que desfilou depois dos movimentos políticos, cívicos e ativistas. Refiro-me à parte mais “festivaleira” do orgulho onde a proporção de mulheres era de, pasme-se, 10% ou menos do total (número estimados, sem qualquer recurso a método científico).

Efetivamente, nas muitas horas de passagem, sempre acompanhada de música alegre e muitas vezes contagiante, com hordas de pessoas a assistir, a interagir, muitas vezes a participar de forma mais entusiasta, ou mais tímida, subindo os Paseo del Prado e de Recoletos, o mais que se via era uma exibição da enorme, e deslumbrante, variedade de homens, exibindo toda a sua exuberância e extravagância, a sua alegria e o seu orgulho. Além dos muitos corpos musculados e sugestivos, da atitude provocante com que se encenavam, dos transformistas, dos peludos, dos motoqueiros, marinheiros, dos de farda, de homens de todos os feitios e formatos, de várias raças, vestidos ou em trajos mínimos, dos camiões patrocinados por muitas e variadas empresas e, ainda, das inúmeras referências a todo e qualquer espaço de diversão noturna e clube de sexo, pouco restava para as mulheres. Raros casos de mulheres vestidas, ou despidas, para provocar, raros casos de mamas ao léu, raros casos de grupos de mulheres provocantes ou cuja presença se impusesse, como sempre acontecia com os homens.

Numa outra dimensão, fora da Marcha do Orgulho, e referindo-me aos 10 dias oficiais da celebração do World Pride Madrid 2017 (23 de Junho a 2 de Julho), toda a cidade se vestiu das cores da bandeira rainbow ou arco-íris, atingindo a dimensão de folclore, colorido e chamativo. Nada contra. Para tal, quase todas as lojas, restaurantes, cafés ou hotéis tinham a sua referência ao evento, celebrando, por vezes com muita criatividade, a luta contra a homofobia. Contudo, mais uma vez aqui, a escandalosa e despudorada desigualdade de género. Festas e mais festas, eventos, encontros, cruising, clubes de sexo, saunas, prostitutos e shows dos mais variados, quase exclusivamente para homens. A desproporção atinge aqui um ponto de tal forma gritante que obriga a refletir. Um punhado de referências para lésbicas no meio de centenas ou milhares de referências para homens gay.

Convém aqui esclarecer que eu não estou, de todo, a fazer juízos de valor negativos acerca da exibição dos corpos ou da provocação sexual cuja pulsão erótica ali se sentia ao ritmo frenético da música e na proporção direta da pele desnuda. Pelo contrário, acho que toda essa exibição é positiva e libertadora, arrasando com os cânones e os falsos pudores e trazendo para a visibilidade o que por tanto tempo andou invisível, ou seja, toda a dimensão da sexualidade humana, do homoerotismo e lesboerotismo (se o quisermos distinguir do anterior), quer choque ou não as mentalidades mais fechadas e pequenas e para as quais apenas me suscita o displicente comentário “temos pena!”). A esse respeito menciono o tão recente caso das capas da revista Cristina, mostrando, em duas versões distintas, um casal de lésbicas e um casal de gays num beijo quente e sensual (ver aqui).

Reflitamos todos e todas nisto. Por vezes interroguei-me se a celebração do World Pride, isto é, do Orgulho LGBT do mundo, não seria antes a celebração do Orgulho Masculino.

Por que razão acontece esta desproporção de género?

No caso dos movimentos políticos, cívicos e ativistas, sobretudo nestes últimos dois, onde a paridade de género, apesar de longe de estar alcançada, parece estar mais próxima de ser uma realidade, compreendo que a representação de mulheres beneficia, e ainda bem, de muitas décadas de movimentos feministas que lutam contra o sexismo. Como já mencionei diversas vezes em artigos anteriormente publicados, a génese da homofobia é o sexismo, e a misoginia, que partem de um modelo de superioridade do masculino sobre o feminino. Consequentemente, num mundo dominado pelos homens, onde só agora (horizonte de algumas décadas), aos poucos, as mulheres começam a assumir lugares de decisão (e ainda assim, com fortes limitações de acesso) a luta pela igualdade de género é essencialmente uma luta política que galvaniza muitas mulheres, cientes da necessidade de lutar pelos seus direitos na igualdade. As lésbicas estão no ativismo, pois, há mais tempo do que a maioria dos gays e isso pesa muito na maior representação de mulheres na primeira parte da marcha do orgulho em Madrid.

Há um fator adicional que merece referência. Os aliados, ou também chamados simpatizantes da causa LGBT, heterossexuais, também marcharam no world pride, ao lado de muitos movimentos e coletivos. Destes, eu diria que a esmagadora maioria é do sexo feminino. Há muitos homens heterossexuais que experimentam elevada dificuldade em associar-se ao movimento, sobretudo se isso implicar a temida visibilidade, receosos de serem percecionados como gays. Por outro lado, as mulheres heterossexuais, apesar de também poderem ser percecionadas como lésbicas, são mulheres, a quem se destina o papel de cuidar das “causas sociais”, pelo que sofrem menos com esse preconceito. Este facto, poderá também favorecer a proporção mais igualitária nos marchantes.

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Por fim, interessa-me ainda, talvez sobretudo, analisar a tão grande diferença de proporção de género no “festival” do orgulho e nas ruas de Madrid ao longo de todos aqueles dias. Vamos, por ora, colocar de parte os movimentos políticos, cívicos e ativistas e focarmo-nos na parte da Marcha do Orgulho mais festivaleira, bem como em todas as festas e eventos ocorridos ao longo de toda a semana, onde a proporção de mulheres terá sido, talvez, cerca de 10%. Acredito que tal fenómeno não tenha uma explicação simples e também não é minha intenção explicá-lo. Atrevo-me apenas a lançar algumas pistas para que possamos melhor refletir sobre ele.

Em primeiro lugar, há uma questão cultural de normatividade ainda muito vincada. Refiro-me obviamente ao papel que se espera de um homem e de uma mulher na sociedade atual. Ao longo de séculos, milénios aliás, salvo raras exceções, foi sempre esperado do homem um papel de maior exteriorização física do que da mulher, da qual se espera mais recato, contenção física e verbal e recolhimento ao lar (tem algo de irónico o facto de os marchantes terminarem o percurso no passeio dos recolhidos – uma das possíveis traduções de recoletos – e desaguarem na praça de Colombo que primeiro aportou no novo mundo). Este condicionamento de muito tempo produz efeitos culturais profundos e capazes de desequilibrar a balança da proporção. Contudo, ao usar este argumento de que as mulheres possam ter um forte condicionamento que as leve a participar de forma mais contida nestes “festivais”, convém mencionar o facto de que nos festivais de verão mundo fora a participação de mulheres como espetadoras é proporcionalmente comparável à dos homens (digo eu, sem referência para aqui citar), facto muito diferente se compararmos quem sobe ao palco ou quem são os cabeças de cartaz, havendo aqui uma desproporção mais uma vez gritante. Então se as mulheres participam muito, em proporção paritária ou perto, em “festivais” de música, por que razão a sua participação no “festival” do World Pride tinha uma proporção tão desfavorável? Creio que a resposta a este ponto é o “sexo”, isto é, há uma distinção muito grande entre um festival de verão musical e um festival do orgulho, onde o principal apelo é a pulsão sexual (recordo que retirámos desta parte da análise a componente ativista). Não estou a afirmar que a sexualidade das mulheres é menor do que a dos homens. Estou a dizer que o condicionamento de milénios as leva a sentirem-se mais agrilhoadas do que os homens, no que toca à exteriorização dessa mesma sexualidade que, acredito, é vivida de forma tão intensa e pulsante, mas mais recatada e invisível.

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Há um outro fator que deve ser considerado e que não é de somenos importância. O marketing. O sexismo, infelizmente, funciona como um ciclo vicioso e, por causa de todos estes preconceitos e diferenças impostas pela normatividade machista, já são esperados muito mais homens do que mulheres nestes eventos. Decorre daí que o marketing associado a estes eventos é quase totalmente dirigido ao público masculino, tirando partido da exibição extrovertida dos corpos de homens (também estes respeitam cânones restritos de beleza), apelando à sua sexualidade, se não vão afastando algum público feminino lésbico, pelo menos não o vão atraindo. As elevadas quantias publicitárias (elevadas na escala do mercado publicitário lgbt, se é que isso existe, ridículas se compararmos com o futebol, por exemplo) despendidas para atrair homens gays ao World Pride faz com que a desproporção de género seja tão elevada, em clara desvantagem para as mulheres.

Em jeito de resumo, atrevo-me a dizer que no World Pride em Madrid, no dia 1 de Julho de 2017, viveram-se, e vivi, momentos de muito orgulho lgbt, em grande partilha de amizade e num clima de festa e celebração. Contudo, porque os marchões (deliciosa expressão do meu homónimo Nuno Miguel Gonçalves) eram sobretudo homens, estamos ainda muito longe de viver um orgulho em igualdade e da igualdade.

 

5 comentários

  1. Nuno, desculpa, mas esta análise parece-me muito condescendente com as mulheres. Se elas (não tu, que és homem) se sentirem pouco representadas, cheguem-se à frente. Isto parece-me muito “coitadinhas das mulheres, vamos cá torcer por elas”… E quanto aos “marchões”, desculpa, mas ser-se gay tem a ver com a sexualidade e o corpo; ter orgulho e confiança suficientes no corpo que se tem, para mostrá-lo no meio da rua, é uma conquista – a história dos cânones, desculpa, mas é uma luta perdida. Eu também quero ver mais mulheres em tronco nu na marcha; mas não deito a culpa nos bombados de ginásio – longe de mim tanta arrogância.

    1. Creio que não entendeste o que quis dizer. Não me parece nada mau haver tantos homens e muito diversos, isso mesmo digo-o no texto. Bombados são muitíssimo bem vindos. As mulheres estão pouco representadas e eu acho que devia haver mais. Não culpo os bombados bem os outros homens por irem.

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