3 Gerações – um filme sobre um rapaz trans

Estreia hoje o filme 3 Gerações da britânica Gaby Dellal, com um elenco de luxo, sobre a vida de Ray, um rapaz trans de 16 anos. 3 Gerações é um filme com inúmeras facetas que merecem ser vistas e analisadas.

Um pouco do enredo (no spoiler).

Ray (Elle Fanning) é um rapaz de 16 anos cujo género atribuído à nascença foi o sexo feminino. Tendo nascido como Ramona, desde muito cedo percebeu ser um rapaz. Vive com a sua mãe, Maggie (Naomi Watts), por cima do apartamento de sua avó Dolly (Susan Sarandon) e da sua companheira Frances (Linda Emond), em Manhattan, Nova Iorque. Ray quer iniciar a terapia hormonal e, por fim, fazer a cirurgia para mudança de sexo mas, para tal, necessita da autorização assinada pelos seus pais. Maggie apoia Ray na sua decisão de reatribuição de sexo, mas enfrenta os seus próprios demónios ao ter que obter a assinatura do pai de Ray. Dolly, por seu lado, uma lésbica de meia idade, com um passado, e presente, ativista (que, pois, vota com a sua vagina) e com uma relação estável com a blazée Frances, não compreende a decisão de Ray, que ela por vezes ainda chama de Ramona, no feminino.

Da linguagem.

Como noutros campos, a linguagem tem uma importância fundamental na questão trans (e não só, obviamente), pelo impacto que tem nas pessoas e pela sua função basilar na construção da própria identidade [de género]. A linguagem é, aliás, um elemento estrutural, e estruturante, do pensamento, podendo, pois, ser um elemento de apoio nessa identidade ou, em oposição, podendo ser um elemento bloqueador e desestabilizador dessa construção, empoderando a pessoa, por um lado, infligindo sofrimento e magoando a sua autoestima, por outro.

3 Gerações é um filme em que a linguagem desempenha um papel central no enredo, estando muito bem pensada e concretizada, tirando partido do binário ela/ele (she/he) ditos tanto na primeira pessoa, como nas segunda e terceira pessoas. Uma nota especial para o facto de a tradução do filme em sala não acompanhar sempre este esforço da escrita inclusiva, retirando algum conteúdo ao filme, para aqueles que não acompanham as falas no original inglês.

Começar do zero.

Uma outra faceta interessante deste filme refere-se ao permanente anseio de Ray, nesta fase que antecede a cirurgia de reatribuição de sexo, por começar do zero (start over). Quer se refira ao corpo, quer ao local de residência, Ray demonstra uma vontade de reiniciar o seu contexto social enquanto rapaz que é. Este ponto é também um ponto muito importante na vida das pessoas trans, que respeita não só a identidade pessoal mas também a forma como são percecionados em contexto social enquanto seres de um ou outro género, cujo reflexo se repercute de forma poderosa no seu bem estar, mais uma vez, empoderando ou infligindo sofrimento (evidentemente, os efeitos são sempre muito mais complexos do que simplesmente o dicotómico efeito positivo/negativo).

Maggie, a mãe de Ray.

Maggie (exemplar interpretação de Naomi Watts) é uma mãe afetuosa, compreensiva, que sofre pelo seu filho e com o seu filho, acompanhando o seu percurso e dando-lhe todo o apoio de que necessita. Esta personagem está muito bem construída, transmitindo de forma clara a complexidade do tema e as dúvidas que, no papel de mãe ou pai, surgem, de forma legítima, nos processos de transição dos seus filhos e suas filhas mais jovens (16 anos). Maggie é apanhada neste processo pelo seu próprio turbilhão de emoções, como já referi, sendo obrigada a lidar com um passado que desejava esquecer. Maggie faz-nos ver que o papel das mães e dos pais de adolescentes trans é também fulcral para o próprio processo em si e para a felicidade destes.

O filme.

Apesar de 3 Gerações ser um filme que (re)trata a temática trans de forma direta e cuidada, estando muito bem realizado a esse nível, o mesmo não se pode dizer sobre a forma como o storytelling está feito, desenrolando-se em duas linhas paralelas, a de Ray e a de Maggie. Mesmo percebendo-se o racional por trás desta opção, a forma algo precipitada e, nalguns casos, surreal, em que decorre a história de Maggie, ou mesmo na forma frequentemente descontextualizada em como são construídas as personagens de Dolly e Frances (uma terceira linha, se quisermos, contrapontística), faz com que o filme não tenha uma narrativa sólida, recorrendo, também, a gags que nem sempre funcionam.

Do ponto de vista das interpretações, e ignorando os atores, cuja função no filme era essencialmente instrumental, temos 4 excelentes interpretações de 4 atrizes, com especial destaque para as brilhantes Naomi Watts, como já dito, e Elle Fanning. É um prazer vê-las interpretar, rindo e chorando ao ritmo das suas pulsações.

3 Gerações é, por fim, um filme que vale a pena ver e com o qual podemos, e devemos, refletir.

 

Nota: O filme 3 Gerações está, desde hoje, em exibição exclusiva nos Cinemas Medeia Monumental.

 

 

Por Nuno Gonçalves

Opinião expressa a título individual.

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