Qual era o Segredo do Sr. Planta?

Em Março passado, a margarina Planta lançou uma campanha um pouco controversa, que criou opiniões polarizadas: objectificação para alguns, sentido de humor para outros. E no fim, a caravana passou.

Planta

A Publicidade é curiosa. De todas as manifestações visuais (cinema, arte, fotografia) é aquela a que estamos mais expostos; podemos escolher não ver um programa de televisão, ou não observar uma pintura – mas é praticamente impossível fugir à Publicidade, em revistas, cartazes, apps. Até na privacidade dos sites para adultos. Como  vemos tantos anúncios, todos os dias, pensamos ingenuamente que estamos vacinados contra eles e mais, que sabemos fazer Crítica. Se está a ler este texto, certamente alimentou-se até este ponto da sua vida; mas arroga-se o direito de fazer crítica gastronómica? A resposta será Não. Mas muitos pensam conseguir criticar marketing sem ter estudado, sem compreender a linguagem da Publicidade; porque ela tem uma linguagem própria, de imagens e palavras, criadoras de discursos que reconhecemos… mas que não chegamos a conhecer. Como quem não sabe falar alemão mas consegue reconhecer e imitar os sons, , náine, dánqua. Somos iletrados em Publicidade.

Um dos erros capitais dos críticos de bancada é o seguinte: “Não sei como é que um homem despido pode ajudar a vender margarina!”. Os spots televisivos e cartazes não servem para vender nada – as imagens não podem executar acções – o seu propósito é Divulgar o produto e enraizá-lo na mente do observador, apelando às emoções – as melhores campanhas são as que falam ao coração. Vender o produto é outra coisa, determinada pelo Posicionamento.


Publicitar margarina é difícil. Falamos de um produto que foi inventado na França do séc. XIX, como gordura de produção fácil e barata para soldados e pobres. Com este começo pouco grandioso, a gordura química, branco-baço como banha de porco, foi tingida de amarelo para imitar a manteiga e esta aura de “coisa dissimulada” levou vários países a impor restrições ao fabrico; o Canadá, por exemplo, exigia que tingissem a margarina de cor-de-laranja para ser detectável a olho nu. A maioria das campanhas publicitárias do séc. XX esforçaram-se por provar que era uma gordura tão boa como a manteiga – o cúmulo do ridículo, no auge do desespero, foi a “margarina com sabor a manteiga”: assumindo que perdeu a batalha, a única forma de se fazer valer é imitar aquilo que os consumidores realmente querem. Resumindo, é a Prima Pobre. Recentemente surgiu um híbrido que não sendo margarina rija habitual, também não é manteiga, por não ser feita com leite; ganhou um nome vago e levemente sinistro, digno de coisa indefinida: “Creme para Barrar”… (Tenha medo… tenha muito medo…)


Como funciona a linguagem publicitária? Na base, é formada por três elementos essenciais: o Packshot (o produto tal como ele pode ser encontrado numa loja), a Entidade Mágica (que oferece informações sobre o produto) e o Elemento Dona de Casa (a figura do anúncio com a qual o observador se deve identificar). Estes elementos são combinados de forma a criar uma imitação da realidade, um mundo ideal onde a vida é melhor graças ao produto: ninguém se zanga numa casa mobilada com IKEA, nenhum homem se corta a usar uma Gillette, etc. A mensagem entregue pela publicidade é o Mito Publicitário, formulado por Roland Barthes.

Segundo este, o Mito (impresso ou no ecrã) começa como um conjunto de linhas, cores, manchas, etc., que o nosso olhar agrega, formando imagens que conseguimos reconhecer (Significantes), e às quais associamos conceitos (Significados). Este processo repete-se três vezes, até pressentirmos de forma inconsciente o mito publicitário em questão, a Grande Mensagem. No caso do cartaz da Planta, os Significantes são um homem em tronco nú, de braços apoiados num balcão de pinho envelhecido, que olha em frente; musculatura definida, pele lisa, com barba e pelos nos braços; tem um anel de ouro no anelar esquerdo; calças azul-cinzento, das quais vemos apenas o cós. Atrás dele, uma cozinha com paredes cinzentas, com utensílios sobre um balcão negro polido e armários brancos; em primeiro plano, o packshot e um girassol. A Entidade Mágica diz-nos “Origem vegetal Sabor irresistível.” numa fonte minimalista, não-serifada, a branco.

Estes significantes têm significados; atribuímos-lhes valores morais: estamos numa cozinha moderna e ordenada, com um homem jovem, genericamente bonito e atlético. Tem calças de andar por casa. Até aqui, tudo fala de Juventude, Confiança, Modernidade. Mas há significantes que remetem para a Tradição e o Antigo: o girassol (símbolo da marca desde a década de 80), a aliança, a bancada de pinho (madeira típica portuguesa, rara na maioria dos balcões de cozinha actuais, de laminado – um material que não é “puro”, “genuíno”). Esta ambiguidade repete-se nas palavras da entidade mágica, que não dão nenhuma informação concreta sobre o produto; são um trocadilho simples: “irresistível” é o homem ou a margarina? Visualmente, nós estamos do lado de cá da bancada e ele está preso na cozinha, numa pose que lembra A Empregada de Bar do Folies-Bergère, de Manet.

A Empregada de Bar das Folies-Bergeres

Ele é o nosso criado, pronto para satisfazer os nossos desejos. Mas assenta as mãos com força, de dedos abertos, enquanto a Empregada de Bar está fragilmente apoiada nos punhos; ela está perdida em pensamentos privados, nem nos vê – mas ele tem um olhar duro, provoca-nos abertamente. Afinal, quem é que manda aqui? Este jogo do gato e do rato leva-nos, inevitavelmente, a descer pelo torso do homem em direcção aos genitais, inteligentemente colocados atrás do packshot – Sabor irresistível. Há várias ambivalências em jogo: sedução/rejeição, tradição/modernidade, puro/profano, submissão/desafio.

Confrontar esta análise com o nosso contexto cultural dá-nos uma leitura do mito publicitário desta campanha. As nossas atitudes ambíguas em relação à (i)moralidade do Corpo; a crítica da objectificação e a incapacidade de lhe fugir; o facto de pensarmos que não levamos a publicidade a sério; a nossa imagem mental colectiva do produto: algo mundano e familiar, que não tem nada de novo a dizer. Esta campanha explorou estes factores e jogou com eles; afinal, Planta está atenta às mudanças à sua volta e é capaz de se regenerar e manter actualizada. Mais, não há nada que a compare com manteiga, o sabor é apenas descrito como “Irresistível” – valendo por si própria, a margarina disse “I Am What I Am”, e saiu do armário! “Planta voltou” é o Mito.


O cartaz e o spot televisivo foram feitos com imenso cuidado; tudo neles gira à volta do que parece ser mas não é, e da união de ideias aparentemente contrárias. Não se pense que os responsáveis desta campanha são criaturas tacanhas, ou com falta de imaginação. Nada disso – são muito inteligentes e souberam usar os críticos de bancada como parte da própria publicidade.

Fiquei satisfeito por ver opiniões diversas acerca deste assunto: de um lado, o Pedro Carreira defendeu que objectificação não é o caminho certo, independentemente do género, e que esta campanha não muda nada. Do outro, o Nuno Gonçalves afirma que a objectifcação do corpo não é por si só um problema, que ser dividida entre géneros e sexualidades é positivo, e que esta campanha foi sim, um passo em direcção à igualdade. O que posso eu dizer? Primeiro, que Objectificação é um conjunto de conceitos (que tem sido mal usado nos últimos 30 anos) e que nunca vai desaparecer da Publicidade. Mas em relação ao dilema dos meus caros colegas – “Esta campanha é inovadora?” – a resposta é tão simples quanto paradoxal: é e não é. Como foi criada à volta de um jogo de espelhos, o sentido que dela podemos tirar é que, se por um lado levou o produto a uma nova esfera (a Sensualidade, o Quarto), por outro, esta lufada de ar fresco mantém os pés assentes na Terra, em valores puramente tradicionais. E quanto ao corpo do homem o mesmo se aplica: se foi arrojado erotizá-lo na cozinha, foi conservadora a escolha do corpo – é um culturista de cara lavada, ponto.

Há grandes mudanças em curso na Publicidade; só poderemos apreciá-las falando a sua língua.

*banho-maria* – técnica que impede uma dada matéria de sobre-aquecer; abordagem a frio de um assunto complexo, com uma distância temporal que permite uma análise profunda; jornalismo vagaroso

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