A quantificação do género e dos géneros

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Género e identidade são produto de várias intersecções de conceitos e premissas sobre o que é ser e, também, o não ser. Existem várias perspectivas que evolvem com profundas diferenças entre si, por exemplo, visões essencialistas e visões abolicionistas, bem como, visões mais interseccionais. Porém, apesar de ser importante discutir e entender de que modo se chega a estas mesmas formas de interpretar sexo e género, mas não é, em específico, de correntes feministas que queria escrever.

No entanto, para que fique esclarecido: a generalidade das perspectivas feministas essencialistas focam-se na biologia de cada indivíduo e, de uma forma geral, a biologia é um traço característico da diferença entre mulheres e homens – negando, em muitos casos, a existência de identidades trans; por outro lado, perspectivas feministas abolicionistas defendem o género como uma forma de classe resultado do patriarcado, funcionando como um sistema de opressão sistémico – porém, abolindo a noção de género no actual contexto, as múltiplas experiências identitárias seriam silenciadas e de difícil reivindicação política; por último, perspectivas interseccionais acreditam no género como expansível e múltiplo e, com isso, são movimentos mais inclusivos a identidades trans. Porém, não é demais dizer que estas perspectivas são sempre válidas para uma discussão alargada sobre sistemas de opressão e entendimento sobre como deveremos fazer as nossas lutas diárias e sociais.

De uma perspectiva essencialista a uma perspectiva abolicionista, passamos por todo um espectro de construção de identidades e género na sociedade. A sociedade de uma forma directa ou indirecta, espelha todo este espectro de visões sobre sexo e género e sobre como estes são construídos. É desta leitura social que queria escrever – pois muitas vezes este perpetuação não tem uma visão ideológica inerente, mas sim uma visão empírica resultado da construção social de cada um nos seus espaços de vivência.

A sociedade move-se como um todo e, o que é sistémico é produto deste movimento social, consequência do movimento de todos os seus elementos em conjunto. É, desta premissa que derivou o título deste artigo: a quantificação do género e dos géneros. Certamente, muitas pessoas, independentemente de se identificarem como trans ou não, passaram pelo crivo social sobre a sua performance de género (incluindo aqui vários parâmetros, expectativa hetero-cis-mono-normativa, expressão, performance, biologia, etc) e o quanto respeitam ou não o cumprimento das categorias mulher/homem (facto amplamente redutor sobre a identidade). Não queria problematizar apenas questões associadas a identidades não normativas de modo a permitir que este texto fosse absorvido por qualquer experiência. No entanto e, para deixar claro, identidades não normativas e pessoas lidas como mulheres sofrem uma opressão sistémica colossal e permanente derivado deste controlo e policiamento constante.

É possível dar exemplos bastante simples (partindo da linguagem binária, por ser a mais comum entre as opressões sociais). O caso das pessoas lidas como homens verte para as questões da masculinidade e da ideia do Homem, forte, musculado, capaz, composto, destemido, agressivo, vitorioso, dominador. Por outro lado, para a Mulher o policiamento verte para a sua natureza enquanto objeto de observação sexual, de obrigação, de fragilidade, cuidadora, mãe, contida, recatada, discreta, submissa – entre muitas outros exemplos. Por cada característica, as pessoas recebem ou lhes são retirados pontos de género – num objectivo de ser mais ou menos homem, mais ou menos mulher. É fácil entender que a generalidade das pessoas também está, de uma forma ou de outra, num espectro de vivência e estas caixas são modelos errados e idealizados, mas no entanto altamente opressivos para a vida do dia a dia de cada pessoa.

Ironicamente, pessoas de identidades dissidentes contestam este escalonamento, esta forma de controlo social e, em consequência, o nível de policiamento escala para níveis ainda maiores. Pessoas trans femininas ou pessoas trans masculinas são empurradas com uma força centrífuga para determinados pólos da sua própria construção identitária. As comuns expressões “só serás mulher quando”, ou “só serás homem quando” (normalmente, a sociedade como um todo, vê nas operações a meta final para se ser “completamente”) e, mais uma vez, nasce fórmulas sobre “mulher/homem completo” – uma noção altamente tóxica.

É importante desconstruir esta forma directa ou indirecta de quantificar géneros e fórmulas e este é um processo contínuo e de sistemático trabalho sobre a nossa própria existência e as nossas limitações sociais construídas e assimiladas. Infelizmente, algumas visões feministas re-afirmam que pessoas trans perpetuam estereótipos de género ignorando o facto de que: pessoas cis (não trans) fazem-no constantemente; pessoas trans fazem-nos, muitas vezes, por uma questão de sobrevivência e segurança. É, então, urgente problematizar a forma como a sociedade hierarquiza formas de existência e qual o seu impacto na vida comum do dia a dia de qualquer pessoa.

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