Harvey Weinstein e As Vítimas e os Facilitadores do Abuso Sexual em Hollywood

Hollywood está em estado de sítio. No passado dia 5 de Outubro, uma investigação levada a cabo pelo New York Times desmascarou os abusos de natureza sexual levados a cabo durante décadas por Harvey Weinstein, um dos mais proeminentes nomes da indústria. Ashley Judd foi há quase vinte anos a vítima de um dos episódios mais perturbadores levados a cabo pelo produtor de 64 anos, tendo convidado a atriz para o quarto de hotel, depois de mudar o local da reunião, onde a recebeu de roupão e oferecendo-lhe uma massagem ou vê-lo a tomar duche. Há apenas três anos Weinstein ofereceu a uma recém-empregada uma aceleração no seu percurso de carreira na condição de aceitar os seus avanços sexuais. São apenas dois exemplos de múltiplos que estão agora a ser revelados pela investigação do jornal americano ou como consequência da mesma.

O quadro da empresa que detinha com o irmão, The Weinstein Company, despediu Harvey Weinstein depois destas declarações. A actriz Rose McGowan, também visada na história do New York Times como tendo sido coagida a aceitar uma compensação monetária como resultado de um semelhante assédio num hotel, tem sido bastante audível na denúncia pública dos crimes do produtor, implorando as mulheres em situações semelhantes a não serem complacentes com o seu silêncio:

“Senhoras de Hollywood, o vosso silêncio é ensurdecedor. Libertem as vossas mentes. Há uma grande responsabilidade em serem melhores do que têm de ser. Lutem pelas mulheres. Lutem pela verdade. Parem de nos magoar. Ergam-se”

Muitas são as atrizes que, por enquanto, se recusaram inicialmente a prestar declarações públicas sobre o sucedido. Uma das primeiras excepções foi Jessica Chastain, fervorosa feminista nas redes sociais, que condenou publicamente as ações de Harvey Weinstein. A atriz confessou já lhe terem chegado rumores anteriormente acerca do seu comportamento o que a levaram a evitar sempre trabalhar com o mesmo, tendo advertido sem sucesso o realizador de um dos seus filmes quando a The Weinstein Company queria comprar os direitos da obra (e fê-lo). George Clooney, Mark Ruffalo e Kevin Smith foram dois dos também poucos homens da indústria a comentar as acusações feitas ao produtor e a mostrar vergonha no trabalho anterior feito com ele.

Mas como é que estas acusações, agora admitidas publicamente pelo próprio Harvey Weinstein, passaram incólumes durante tantos anos? Aparentemente o produtor teve ajuda preciosa de outros grandes nomes em Hollywood para ajudar a encobrir as histórias que iam surgindo acerca do próprio. Uma investigação anterior feita pelo site The Wrap foi silenciada depois de ameaça de ação legal por parte da The Weinstein Company, enquanto um dos seus patrocinadores, e alegada interferência de pessoas como Matt Damon e Russell Crowe, que se juntam a uma lista de facilitadores dos abusos sexuais de Weinstein ao longo de mais de vinte anos.

E como eles muitos serão outros que não só fecharam os olhos às histórias de assédio por interesses próprios como também terão inclusivamente encoberto outras tantas. De Harvey Weinstein e todos os outros. O desequilíbrio de poder em Hollywood há muito que origina atrocidades de crimes de género, onde as mulheres muitas vezes se sujeitam a situações similares ou ainda mais escabrosas na promessa de um lugar na indústria. Estes crimes precisam necessariamente de ser tornados públicos e punidos com a justiça merecida. O silêncio precisa de ser quebrado.

Mas esse é apenas um dos muitos passos a dar. O assédio acontece, directa- ou indirectamente, pelo desequilíbrio de poder que existe na indústria. E tal também tem origem na desvalorização geral das mulheres, nomeadamente na iniquidade salarial. Em Hollywood, tal como a maioria das indústrias, essa desigualdade no cachet entre homens e mulheres é atroz. É esperado e aceite que atrizes que partilham o mesmo tempo de ecrã com os seus colegas homens sejam mais mal pagas. Emma Stone, recém-Oscarizada, é uma das que rema contra a corrente e faz com que os seus co-protagonistas aceitem uma redução no salário para receberem o mesmo valor compensatório que ela. Numa lista dos trinta actores mais bem remunerados do ano passado, apenas onze mulheres figuram e Stone é a primeira, depois dos 14 lugares cimeiros serem ocupados por homens. E, apesar de sinais contraditórios antigos e recentes claros acerca da baixa rentabilidade de filmes protagonizados por mulheres, elas continuam a ter disponíveis apenas 30% de todos os papéis falados na indústria.

Não surpreendentemente Hollywood é sexista. O Mundo é. Mas a “fábrica de sonhos” americana, que continua a inspirar milhões e milhões de crianças e adolescentes, precisa de assumir um papel decisivo na promoção da igualdade e deixar, de uma vez por todas, de evitar a palavra “feminismo”. A representatividade das mulheres nas telas precisa de ser equitativa para que os salários acompanhem e cenários de assédio provocados por desequilíbrios de poder diminuam. Perseguir os criminosos de nada vale se não for feito um esforço real de contrariar a ainda prevalente ideia de que as mulheres são, de forma sistémica, inferiores.

E para terminar, um pequeno aparte. A luta feminista é a luta LGBT. A discriminação para com as mulheres e a desvalorização de tudo o que é minimamente considerado feminino é historicamente a origem da violência para com as pessoas homossexuais e transgénero. Por isso continua-me a surpreender negativamente a forma como muitos dentro da comunidade, predominantemente homens gay, insistem numa separação das lutas. No caso de não existir efetivamente uma misoginia intrínseca ao discurso feito muitas vezes em defesa dos direitos LGBT. As lutas pela igualdade não são independentes. Têm de ser unas. Enquanto assim não for não há gritos solitários de socorro que nos valham.

ACTUALIZAÇÃO: Gwyneth Paltrow e Angelina Jolie juntam-se aos nomes das vítimas de assédio do produtor. Matt Damon foi também ilibado pela própria jornalista do The Wrap de qualquer conhecimento de assédio por parte de Weinstein.


Atualização 11 de março 2020:
Dois anos e meio depois de se ter tornado no nome catalisador do movimento #MeToo, Harvey Weinstein foi condenado a 23 anos de prisão pelo Tribunal de Nova Iorque. A importante sentença diz respeito aos crimes de acto sexual criminoso no primeiro grau e violação no terceiro grau que vitimaram duas mulheres, mas é também a justiça a pronunciar-se sobre uma gradual mudança de abordagem aos crimes sexuais e à credibilidade das vítimas.

“Sinto pesar por todas vocês e por todos os homens que estão a passar por esta crise”, disse.

Não é crise, é justiça!


O assédio e a violação no cinema esteve em discussão no Podcast Dar Voz A esQrever, oiçam: