Al Berto (filme): “Sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade”

Quem espreitar as novidades cinematográficas portuguesas de certo que encontrará a imagem de Ricardo Teixeira enquanto o poeta Al Berto. Filme de Vicente Alves do Ó centra-se no período de 1975 a 1978, depois do poeta Al Berto regressar do exílio em Bruxelas e se reinstalar em Sines, vila da costa alentejana que o viu crescer.

Um poeta, esquecido pelas aulas de português. Viveu enquanto “poeta maldito”, como Baudelaire. Ao mesmo tempo que se enquadrava nos quadros teóricos revolucionários do pós-25 de abril, distanciava-se dos mesmos sendo considerado libertário “demais”. A mentalidade da população de Sines dificilmente acompanhou a mudança de paradigma político português.

Do que é que o filme retrata afinal?

Retrata a vida de um carismático poeta português que não se deixava viver nas regras aprisionantes da sociedade, que criticava as suas normas e regras, e que pretendia viver o mais livre possível com os seus amigos, amantes, livros e poesia que tanto prezava.

Retrata o amor e a traição num ambiente libertário, considerado “hippie” por outros autores. O que nos deixa questionar sobre a legitimidade do conceito de “traição”. Retrata uma sexualidade fluída sem preconceitos, ainda que escondendo o nome da bissexualidade ou da pansexualidade. Mais uma vez, foge-se para uma “classificação” mais fácil, contando com alusões à época de críticas e ofensas como “maricas” escritas no palacete livre do poeta.

Uma vida íntima e amorosa que a comunidade de Sines censura no seu quotidiano, ainda que não deixe de existir um sentimento de luta contra preconceitos nos jovens, como um estandarte da revolução de Abril. Al Berto pretendia trazer para Sines o que aprendeu em Bruxelas, houve quem o acompanhasse, houve quem o censurasse.

Noutra leitura, é possível ver a predominância da classe social na identidade das personagens. Num discurso do pós-25 de abril, repleto de alusões ao operariado de Sines, à pesca, à lota, à falta de mobilidade social, às memórias da repressão ditatorial (ainda que qualquer alusão à repressão ditatorial e de costumes torna-se quase sempre irónico na resposta de Al Berto face ao facto da sua vida íntima ser ela própria vítima de condenação social entre a comunidade).

Há um Al Berto com dinheiro, há o amante João Maria de “boas famílias”, há um público amante de literatura e poesia, mas também há operários resignados e sonhos perdidos na lota, há uma mulher que procura estabilidade e finalmente uma casa para o filho morar. Há a promessa de vida poética que se intersecciona constantemente com o medo da mudança. É a classe social enquanto elemento predominante na construção interseccional das personagens.

Há também um sentimento de pertença a Sines. Mas uma Sines que ainda não existia nos anos 70. O quadro conservador português não acompanhava o espírito iluminado que o poeta queria trazer de Bruxelas e que os cravos tinham prometido.

Iluminado mas também melancólico: sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade” (“Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida”, Al Berto).

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