Não, Kevin Spacey, não aceito o teu coming out. Nem agora nem nunca.

O coming out é um processo doloroso, moroso e sempre profundamente pessoal. Não se deve de forma alguma forçá-lo em quaisquer circunstâncias, e estrada da auto-aceitação é árdua e cheia de armadilhas, muitas delas que minam o caminho temporariamente ou mesmo para sempre, prendendo quem o trilha num beco sem saída para o resto da vida. Por isso, toda e cada pessoa deve decidir em consciência e segurança o momento certo para o fazer, depois do tempo e experiência necessários para conseguir enfrentar o mundo, incluindo aqueles que, inevitavelmente, não o irão aceitar. Sempre defendi que não existe momento errado para um coming out, desde ele que seja certo para a pessoa que o faz. Hoje mudei de ideias.

Acordámos todos hoje com mais uma notícia de assédio sexual em Hollywood. Desde feita uma acusação do ator Anthony Rapp que há 30 anos, quando tinha apenas 14, foi assediado de forma agressiva pelo célebre Kevin Spacey, com 26 anos na altura. Em 1986, Rapp terá sido convidado para uma festa em casa de Spacey em Nova Iorque juntamente com mais colegas (adultos) da Broadway. Terá sido aí que encontrando Rapp sozinho, um Spacey inebriado terá pegado nele ao colo e deitado-o na sua cama, forçando avanços de natureza sexual sobre o mesmo. A resposta de Spacey não tardou:

Spacey demonstra horror com a descrição de Rapp e afirma não se lembrar da história que terá ocorrido há mais de três décadas. Mas na admissão possível de o ter feito, culpabiliza a conduta num estados de alcoolemia e pede desculpa pelos sentimentos que Rapp carregou todos estes anos. Logo aqui surgem uma série de dúvidas que não nos cabe a nós aferir sobre presunção de inocência – até declaração de contrário. Contudo parece haver logo à partida uma contradição entre a inexistência de memória de tal abuso e a atribuição de culpa caso ele tenha acontecido a uma inebriação com três décadas. Mas o pior vem a seguir.

Depois deste atabalhoado pedido de desculpas com uma semi-assunção de culpa, Kevin Spacey faz o pior que podia ter feito: decide que é o momento oportuno de levantar o pano da sua vida privada e assumir relações com mulheres e homens no passado, afirmando-se agora viver enquanto homem homossexual. Enderecemos primeiro a falta de vergonha neste transparente desviar de atenções do assédio do qual foi acusado para a natureza da sua orientação sexual, que nada tem a ver com o caso. Um predador é um predador, heterossexual ou homossexual, e não existe qualquer ligação entre isso e a (des)culpablilização de abuso.

O que Spacey está a fazer neste preciso momento é reforçar conscientemente a falácia da correlação da homossexualidade com a pedofilia, um falso e absurdo conceito arcaico que levou décadas a ser atenuado e que continua no entanto a ser usado ainda por alas mais conservadoras e desinformadas como um critério em discussões de aprovação de adoção por casais do mesmo sexo. É uma tentativa perversa, danosa e nojenta de se proteger de alguma forma de atos os quais pode ou não vir a ser acusado em sede própria, depois de agora julgado em praça pública. Um golpe tão baixo e sujo que não parece real e sim vindo das orquestrações fictícias da sua personagem Frank Underwood em House of Cards.

Sempre fui admirador do trabalho de Kevin Spacey e sempre estive ciente dos fortes rumores da sua homossexualidade ao longo das décadas. Cheguei inclusivamente a ter empatia com o mesmo por sentir que não podia viver livremente a sua identidade em Hollywood por medo de represálias na indústria. Agora chego à conclusão que a vítima é possivelmente um agressor conhecido, tendo em conta que já começaram a surgir mais relatos sobre a conduta de Spacey noutras situações. E esta súbita honestidade na assunção da sua orientação sexual não desculpa nada. Pelo contrário. Revela que a falta de escrúpulos mostrada na televisão é apenas uma primeira camada, a mais superficial de todas.

Por isso não.

Não vamos celebrar este sórdido coming out de Kevin Spacey.

Não o vamos deixar erguer a bandeira arco-íris com sangue nas mãos.

Não o vamos receber de braços abertos e elogiar a candura.

Nem agora, que o faz com intenções asquerosas… nem NUNCA.