Fora Do Armário Com Paulo Côrte-Real: “O Processo de Saída do Armário Nunca Acaba”

Estreou na Antena 1 o programa de rádio dedicado a assuntos LGBT, nomeadamente a importância individual e colectiva da visibilidade depois da saída do armário. Tem a apresentação de Paulo Côrte-Real, reconhecido feminista e ativista dos direitos LGBT e que já ocupou diversos cargos na ILGA Portugal, ILGA Europe e Aministia Internacional. Atualmente integra a plataforma “coisas de género” e o programa municipal “Campolide é Igualdade“. E falamos com ele sobre este novo projecto, “Fora do Armário“, bem como o estado atual do feminismo e dos direitos LGBT em Portugal.

O Fora do Armário surge numa altura em que a rádio volta a ter uma forte relevância e alcance na discussão político-social através da cultura de podcasts que chegam agora a mais pessoas. Como foi o processo de proposta e construção do programa, que será o primeiro a abordar na rádio pública a temática dos direitos LGBT de forma regular?

Um amigo meu alertou-me para a consulta pública de conteúdos que a Antena 1 estava a promover e pensei que seria de facto uma oportunidade de dar mais voz às vozes de pessoas LGBT.

Entre 2007 a 2009, tinha tido uma experiência de rádio de que gostei muito, intervindo enquanto gay (e enquanto ativista LGBT) no programa Janela Aberta do Rádio Clube Português e achei que seria um desafio tentar ir mais além e pensar um programa que eu pudesse conduzir e que fosse de encontro às minhas preocupações enquanto ativista.

O desenho do programa aconteceu muito em função da análise que faço da realidade atual: por um lado, as principais mudanças legais que geraram muita discussão pública e muita visibilidade já aconteceram, sendo preciso formas novas de promover essa visibilidade e essa centralidade em termos de atenção pública; por outro lado, a constatação de que o peso dos silêncios do passado está longe de acabar e de que os níveis de armário em Portugal são ainda absurdos (nomeadamente face às mudanças legais das últimas décadas), com todas as consequências negativas que já se sabe que o armário traz, quer em termos de saúde e bem-estar pessoal quer em termos de progresso social.

Quis por isso propor um programa que permitisse partilhar experiências de saída do armário (ou de saídas dos armários, porque há muitos momentos de saída e muitos armários dos quais sair). O meu objetivo foi pensar numa sequência de programas que pudessem mostrar uma diversidade de experiências das pessoas LGBT, que também têm várias outras características identitárias que afetam quer o impacto da discriminação quer as experiências de saída do armário. A ideia é que no conjunto de 12 programas (para já), essas pessoas (mais e menos conhecidas) partilhem as suas histórias não só com quem ainda está a tentar sair dos seus armários mas também com todas as pessoas que podem passar a conhecer melhor o que isso significa – e o que significa a discriminação que é viver em silêncio, para além das outras discriminações.

Fiquei, claro, muito contente com o facto de a Antena 1 ter selecionado esta proposta e valorizado estes objetivos (já expressos na proposta que submeti), porque também me parece que uma das funções principais da rádio pública é a de dar espaço a vozes pouco ouvidas, ajudando a quebrar silêncios particularmente pesados do nosso passado e do nosso presente.

A nível de legislação, Portugal é mesmo dos países mais avançados na Europa, nomeadamente no campo da família e da identidade de género. Mas quando olhamos para os dados da discriminação e igualdade das pessoas LGBT caímos a pique nos rankings. O que espelha de certa forma a homofobia e transfobia algo vigentes no nosso país e na vivência diária de pessoas que não encaixam no conceito social normativo. Pensas que agora é altura de tentarmos mudar mentalidades de outra forma, fora do campo estritamente político e com mais foco na intervenção social e cultural e principalmente na promoção da visibilidade das pessoas LGBT em propostas como esta? Nomeadamente de perceber o que é o armário com todas as suas implicações?

Diria que no campo político ainda há muita intervenção a fazer, precisa é de ser mais criativa agora… Em todo o caso, parece-me fundamental mudar práticas institucionais (com uma aposta clara na formação ao nível nomeadamente das polícias, tribunais, profissionais de saúde) e práticas individuais quotidianas (incluindo a linguagem) e, sim, promover um salto na visibilidade e na representação de pessoas LGBT aos mais diversos níveis, tendo sobretudo em atenção a sua diversidade e também as outras categorias de discriminação a que podem pertencer.

Acho que, enquanto sociedade, em Portugal temos tido complacência a mais com o sistema do ‘não perguntes, não digas’. Parece-me que as consequências negativas (pessoais e sociais) dos vários armários ainda não são claras para quem os impõe (e por vezes até para quem os suporta). Diria que é por isso importante ter mais pessoas a sair do armário e a falar sobre as suas saídas do armário – e mais pessoas a partilhar não só os episódios de discriminação (que pode ser múltipla) de que foram alvo, incluindo aqui a experiência dos silêncios forçados, mas também a forma como os ultrapassaram. (Continuar a) quebrar a inércia do sistema parece-me fundamental, evitando sobretudo naturalizar o passado e usá-lo como modelo para o futuro. Acho que é esse um dos contributos que @s convidad@s do Fora do Armário podem dar.

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Foto de Noémia Gonçalves, produtora do “Fora do Armário” na Antena 1

Pegando aí, queres ou podes desvendar quem serão @s primeir@s convidad@s do e como contribuíram de formas diferentes para essa tentativa de erradicar do armário das suas vidas e assim ajudar a uma visibilidade das pessoas LGBT em diferentes áreas?

Os primeiros três programas serão com o Miguel Vale de Almeida, a Ana Pérez-Quiroga e o Paolo Gorgoni, pessoas com intervenção complementar em áreas como a política, as artes e o ativismo. Mas o melhor é mesmo ouvi-l@s 🙂

É justo. Mas então viro a pergunta ao contrário. Como é que a tua saída do armário te mudou a ti e às pessoas à tua volta, pessoalmente e, acima de tudo, profissionalmente? E enquanto pessoas LGBT esse processo de saída do armário é diário e muitas vezes injusto e quase que ainda visto como um gesto político, achas que pode deixar verdadeiramente de o ser?

A minha saída do armário foi, evidentemente, libertadora. Aprendi desde cedo a verdade como um valor e apesar dos custos (que foram vários, pessoais e profissionais), para mim era claro que tinha que o fazer, numa altura em que ainda menos pessoas o faziam em Portugal. Ainda assim, tinha várias vantagens sociais (homem, “branco”, etc) que me davam também mais condições para o fazer – e, a meu ver, uma responsabilidade acrescida de o fazer também.

Claro que foi um processo e que houve muitas saídas do armário. Também é verdade que o processo nunca acaba verdadeiramente porque continuo a ter que me afirmar gay várias vezes sempre que me pressupõem heterossexual (da consulta médica até ao questionário telefónico, o pressuposto é ainda universal). E sim, essa afirmação é inevitavelmente um gesto político porque contraria o silêncio e o medo que nos foram e ainda são ensinados de tantas formas, pondo esse sistema de desigualdade em causa (e ainda bem), para além de questionar também o heterossexismo – o tal pressuposto universal -, convidando a que se veja o mundo como ele é.

Em termos de mudanças, para além das mudanças em mim – e francamente acho difícil explicar o que significa sentir liberdade, mas foi o que me permitiu nomeadamente construir relações familiares e também intervir enquanto ativista -, houve muitas outras. As pessoas à minha volta – na minha família, no meu círculo de amig@s, no meu trabalho – passaram a ser confrontadas com a necessidade de lidar com a quebra do silêncio. Isso significa perceber primeiro que não há um protocolo de conversa sobre o ser-se lésbica ou gay quando a regra é o “não perguntes, não digas”: se se diz sem que tenha sido perguntado, o que é que se faz a seguir? Fala-se do assunto? E como, com que termos? Os silêncios das pessoas à volta também foram sendo quebrados, aos poucos, toda a gente foi saindo do armário – e a aprendizagem acabou por ser conjunta. Enquanto professor, fui confrontado com centenas de alunas/os todos os anos – e pelo menos nos anos iniciais após o coming out, o que algumas e alguns me disseram posteriormente é que era a primeira vez que conheciam alguém assumidamente gay (em turmas que teriam provavelmente dezenas de lésbicas e gays). Lembro-me de uma vez apanhar um aluno a entrar na sala e a dizer para outro “Ao princípio não achava, mas agora que sei já parece“; achei delicioso: é isso mesmo, sou, portanto pareço; finalmente há uma noção de realidade.

O feminismo tem sido dos temas mais polémicos dos últimos meses nos jornais e redes sociais graças a uma quebra de silêncio em relações a abusos diversos. As reações mais surpreendentes, para mim, têm partido de muitos homens gay que parecem condenar ou desacreditar qualquer denúncia de desigualdade de género. A misoginia está entranhada até em pessoas que, pelo percurso esperado de desconstrução identitária, deveriam perceber que a luta é a mesma. O que está a falhar aqui?

Bom, desde logo, o sexismo está particularmente entranhado e naturalizado, o que o torna muito mais difícil de identificar e, por isso, de combater. A perceção da discriminação com base no sexo continua baixíssima em Portugal e na União Europeia, quando comparada com as demais, independentemente de tudo o que parece ser evidente em termos de números de violência e de desigualdades salariais ou de acesso ao poder político e económico. Momentos como este são importantes precisamente para alertar para a discriminação e para ajudar a identificar o que não temos conseguido identificar coletivamente.

Quanto às reações, todas as pessoas são educadas para o sexismo; a sua desconstrução é que é o desafio. E no caso de homens (pessoas educadas para serem homens, incluindo aqui os homens gay), uma das dificuldades clássicas é a de conseguirmos ouvir o que as mulheres têm a dizer – e de não falarmos por cima das suas vozes. É um bocadinho esse também o desafio agora, o de conseguir ouvir. Pela primeira vez quebra-se um silêncio que tem sido uma constante e que é só mais um indício de um sistema de desigualdade que comporta em si várias violências. Mas as vozes só podem ter impacto se também as soubermos ouvir, a mudança tem que ser conjunta.

Agora não há uma inevitabilidade de se prestar atenção a outras discriminações por se ser alvo de uma, embora me pareça claramente desejável gerar alianças e criar empatia com quem é alvo de diferentes tipos de discriminação. Essa é uma das questões que acho que vale a pena trabalhar (e que também estará presente de forma transversal no ‘Fora do armário’) – sobretudo a relação umbilical entre sexismo e homofobia, que me parece fundamental para que possamos intervir de forma mais eficaz contra o sistema de género ainda vigente.

E para finalizar, qual foi a pessoa que ao sair do armário mais importância teve para ti no teu próprio processo? E porquê?

Foi o Miguel (Vale de Almeida). Ainda antes de o conhecer, tinha lido o ‘Os tempos que correm’, a coletânea de crónicas que o Miguel tinha escrito no Público nos anos 90 – e a identificação foi muito forte e imediata. Claro que outras pessoas pelo mundo me marcaram mas para mim foi fundamental a identificação com alguém que estivesse fora dos armários portugueses. Aliás, também por isso foi claro que deveria ser ele o primeiro convidado deste programa.

Fora do Armário” estreia na noite de hoje na Antena 1 às 00h13 e terá disponível a emissão em podcast muito em breve

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