A Visibilidade de Black Panther

Muitos já deverão estar fartos da contaminação dos cinemas pelo Universo Marvel na última década. Desde o sucesso em 2008 de Iron Man e em 2012 d’Os Vingadores que a salas têm vindo a ser inundadas, mais que uma vez por ano, por filmes de super-heróis. Curiosamente o Marvel Cinematic Universe (MCU), no qual estes filmes estão inseridos, tem sabido evitar a saturação dando oportunidade a realizadores e escritores um pouco mais marginais ao típico filme de acção de Hollywood carregado de CGI e pouco mais. Mas falta representação. Quase todos estes heróis são homens cis brancos, tal como foram quase todos os outros do passado. Não é muito fácil ultrapassar os dedos de uma mão na contagem de exemplos do passado que tenham fugido ao normativo. E se isso não nos impedia, a todos e todas, de nos identificar emocionalmente com os grandes heróis que vimos nos ecrãs, também é verdade que raramente eles eram minimamente parecidos ou iguais a nós, tornando essa identificação sempre limitada.

Essa necessidade de visibilidade foi-se tornando cada vez mais incontornável e o MCU a ela não lhe escapou. Desde que Black Panther foi anunciado que a pressão dessa representação se sentiu desde o início. A comunidade negra sempre viu os seus heróis serem esquecidos pelos enredos, muitas vezes apenas elementos decorativos coadjuvantes do protagonista, e sempre a inserir-se nalguma visão estereotipada que alguém tinha de uma comunidade enquanto homogénea. E assim nos fomos habituando a isso. Mas quando o primeiro super-herói africano surge num grande ecrã as expectativas estão tão elevadas que facilmente se poderiam deturpar. Felizmente, para o jovem realizador Ryan Coogler – conhecido por Fruitvale Station e Creed – e para nós, todas as apostas parecem ter sido ganhas.

No primeiro fim-de-semana de lançamento o filme ultrapassou os 200 milhões de dólares, ficando apenas atrás do mais rentável do filme alicerce do franchise, o primeiro capítulo d’Os Vingadores. A crítica prostou-se a seus pés e tornou-se no mais bem cotado filme da Marvel. E acima de tudo, criou uma discussão cultural sem precedentes sobre a validade e a necessidade de representação em Hollywood. Não são filmes nicho, para pequenos grupos de pessoas, são filmes que na visibilidade acrescida de um grupo de pessoas normalmente relegadas para segundo plano se tornam instantaneamente universais. E, visto que falamos a lingua do dinheiro, rentáveis.

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Tudo se passa em Wakanda, reino escondido do resto do mundo para proteção dos seus habitantes. Foi por isso o único país de África que escapou ao colonialismo e se tornou no mais avançado polo tecnológico do Mundo. Começa logo por aí por ser desconcertante pensar o que seria se um país, no berço da Humanidade, não tivesse sido devassado e explorado por forças exteriores e lhe fosse dada a oportunidade de evoluir sem esta opressão e desigualdade. Os resultados deste incrível afrofuturismo são, para os padrões de hoje, ainda um pouco utópicos mas não menos acutilantes e relevantes por isso. O protagonista é T’Challa  – pelo já iconoclasta Chadwick Boseman, novo rei de Wakanda que, depois da morte do seu pai se vê inicialmente incapaz de tomar as rédeas de um país em mudança num mundo fracturado e a necessitar desesperadamente da sua ajuda. Como abrir então este paraíso ao mundo exterior sem o perder para sempre?

Quando falo em protagonismo este é na realidade partilhado. O titular de Black Panther tem a seu lado um número incrível de mulheres que o apoiam e elevam. E elas não são meros adereços de cena, interesses românticos serviçais ou personagens unidimensionais desenvolvidas para criar algum conflito necessário para refletir o pathos do protagonista. São essenciais para a estabilidade de Wakanda. Nomeadamente a tropa protectora do rei e do reino, as Dora Milaje. A maior força militar de Wakanda é exclusivamente feminina e, curiosamente, representa os melhores guerreiros do reino. Simplesmente esses guerreiros são todos eles mulheres. E não há quem questione as suas capacidades. Aliás, todos e todas dependem delas. Isto levanta uma questão igualmente válida: o que de facto aconteceria numa sociedade em que as mulheres não fossem à nascença desvalorizadas como ‘o sexo fraco’ e lhes fosse permitido, sem restrições nem convenções, atingir todo o seu potencial, qualquer que ele fosse, até o bélico. E aqui como Okoye, líder das Dora Milaje, temos a interpretação fervorosa de Danai Gurira, conhecida pelo seu papel em The Walking Dead, que veste sem preconceitos de género a pele daquela guerreira, negra, orgulhosa, feminina e implacável. Só faltou dar a dois elementos da Dora Milaje um romance lésbico que está a definir muitas das histórias actuais dos comics.

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Isto porque o interesse romântico de T’Challa é um que não se deixa renegar a esse papel. Nakia, protagonizada pela inacreditável Lupita Nyong’o, é alguém que decidiu dolorosamente deixar a pessoa que amava em prol do bem maior e da proteção de tudo e todos aqueles que amava. Uma mulher cuja independência intelectual é tal que, mesmo quando o rei se ajoelha aos seus pés em prova de amor incondicional, ela diz que ainda tem muito trabalho a fazer. Por ela, por ele, por Wakanda. Não acabando aqui, a irmã adolescente do rei, a princesa Shuri, é a maior cientista do reino e a rainha-mãe um símbolo de força suprema e dignidade. Mas as mulheres de Wakanda não se restrigem às atrizes que interpretam estes papeis revolucionários. Por detrás do ecrã, chefes de design de produção, guarda-roupa, entre muitos outros, são também mulheres.

E a maioria do elenco e equipa que transformam Wakanda neste paraíso afrofuturista é também orgulhosamente negra. Numa altura em que as questões raciais ganham novos contornos no mundo pós-Trump, vemos o aparecimento de algo tão representativo e com uma relevância cultural tão grande como Black Panther com entusiasmo e urgência acrescidos. O antagonista de Black Panther, Killmonger – protagonizado pelo desarmante Michael B. Jordan – não é só o melhor vilão da Marvel até agora, é uma versão paralela de T’Challa caso ele não tivesse tido o privilégio de viver a vida que viveu. É alguém torturado pelas agruras e discriminações raciais que a ele foram dirigidas desde criança. E que, por isso, não conhece outra forma de encarar o mundo que não de forma violenta e conflituosa.

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Numa cena depois dos créditos, novamente reforçando o contexto desavergonhadamente político e de inclusão de Black Panther, T’Challa apresenta-se às Nações Unidas afirmando que é tempo de construir pontes e não muros. E assim nos deixamos de subtextos e trazemos a verdade para a frente. Porque quando aqueles e aquelas que são colocadas à margem pela maioria se elevam para além das discriminações diárias e micro-agressões que não parecem ter fim… é motivo de regozijo e celebração. Numa festa em que todos e todas devemos dançar como se fosse a última vez. Numa luta pela qual todos e todas devemos lutar até ao derradeiro suspiro. Só  assim seremos mais iguais. Por Wakanda. Sempre.

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