Marvin Bijoux e a interpelação despudorada do passado

Hoje é Dia das Mulheres. Provavelmente não foi de propósito, mas hoje é também o dia da estreia em Portugal do filme Marvin (Marvin ou la belle éducation), um filme assinado por Anne Fontaine, de 2017.

Marvin (Jules Porier) é uma criança que vive numa aldeia do norte de França, no seio de uma família de parcos recursos, com relações pouco estruturadas e dependente de ajuda estatal. Marvin, como toda a sociedade que o rodeia, cresce num ambiente homofóbico, machista e racista, tanto em casa como na escola. O medo causado pela violência, física e emocional, fazem de Marvin mais uma criança cuja liberdade é caçada pelo preconceito, cuja felicidade nunca é plena, violada na sua pureza pela homofobia, que ele conhece, ainda antes de conhecer o desejo ou a própria sexualidade. Como tantos outros, internaliza a culpa, a vergonha e a homofobia, fazendo o seu percurso de sobrevivência num ambiente hostil e cruel. Marvin (Finnegan Oldfield) cresce e torna-se jovem. Ajudado por uma professora – a Sra. Clément (Catherine Mouchet) – dedica-se de alma e corpo ao teatro, onde consegue, mais do que ser feliz, aprender a lidar com o seu passado, apesar de mal saber sorrir. Mais tarde, encontra um casal – Abel (Vincent Macaigne) e Pierre (Sharif Andoura) – e uma outra mulher – Isabelle Huppert (Isabelle Huppert) – que separadamente continuam o trabalho da Sra. Clément, de o fazer compreender e recomeçar a sua história.

 

Muito mais do que sobre homofobia, este filme é sobre a linguagem e sobre o famigerado politicamente correto, que tão mal tem sido tratado. Esta história dá-nos a sentir a poder devastador, ou reparador, que tem a linguagem sobre seres humanos. Tem, sem dúvida, uma gigante ressonância interior em mim, como terá em muitos (todos?) dos que algum dia sentiram o ódio. O ódio impresso em insultos como “paneleiros”, “maricas”, “fufas”, “pretos”, “gordas”, e tantos outros que abundam nos diálogos, impregnam a alma e o corpo do próprio ódio, de sujidade que queremos limpar e não conseguimos. A linguagem tem, como refere Abel, um português de segunda geração, Diretor da uma escola de teatro que Marvin frequenta, o poder de impor uma identidade às vítimas dos mais diversos preconceitos, como forma de amplificação da opressão e do ódio sobre os seus elementos que, passam, assim, a representar essa identidade, alvo de ódio.

Numa narrativa desta natureza, são sempre muitos os exemplos que podemos encontrar de estórias com contornos semelhantes, quer no cinema, quer na literatura ou no teatro. De todas as que me ocorrem, e são muitas, destaco uma que me parece ser muito relevante, pela forma como os seus protagonistas, ambos homens brancos gay, lidam com o sentimento de opressão em que vivem imersos, quer nas escolas e aldeias em que habitam, quer no seio das suas próprias famílias. Refiro-me a Édouard Louis, que escreveu o livro En finir avec Eddy Bellegueule (Acabar com Eddy Bellegueule), editado em Portugal pela Fumo Editora (2014). Realidade e ficção misturam-se nestas duas narrativas francesas. Eddy (real) partilha com Marvin (ficção) quase tudo de um quadro opressivo e asfixiante dos seus tempos da infância e adolescência. A semelhança é mesmo muita. Porém, o mais importante de referir é a forma como ambos decidem lidar com a perda, perda da felicidade, perda da infância, perda do amor, perda da dignidade. E fazem-no expondo-se publicamente, despindo-se de toda a privacidade e interpelando o próximo, o mundo inteiro diria até, para que todos e todas concorram para uma justificação do sucedido, e lhes permitam a apaziguamento. Nesta busca da justificação, decidem expor o facto de que a sua homossexualidade é uma forma radical de exílio, pois são estranhos na sua própria casa, estranhos entre os seus. Este diálogo com o seu passado e com toda a opressão de que se apropriam, permite um exorcismo catártico necessário à paz. Este caminho trilhado por Eddy e Marvin é, para mim, o novo ponto de vista que esta objetiva nos traz.

Não tanto inovadores, mas certamente muito verdadeiros, relevantes e úteis, até, são muitos dos temas abordados neste filme. Desde o sexismo enraizado, cuja génese é a mesma da homofobia (já discutido aqui), ou seja, a assunção do pressuposto de superioridade do masculino sobre o feminino, patente na repressão das características sexuais de Marvin ao colá-las a comportamentos identitários femininos, como sendo maus, pervertidos e degenerados, passando pela confusão, infelizmente tão comum, entre homossexualidade e pedofilia, esta estória (im)provável, é um poderoso documentário do dia-a-dia de tantas crianças e jovens. E adultos.

Com uma belíssima banda sonora, esta película dirigida por Anne Fontaine tem planos de uma excecional beleza, destacando-se todos os variados planos em que Marvin aparece como que destacado do panorama, num centro de indeterminação onde todo o futuro é possível. Esta dimensão de fotogenia é visível no delicado tratamento da cor, sobretudo no que toca à cor da pele. As interpretações, destacando-se as dos dois atores que desempenham o papel do protagonista, são de uma força desarmante e a refrescante participação de Isabelle Huppert como Isabelle Huppert.

Este filme, Marvin ou la belle éducation é um ótimo filme a não perder. Façamos todos como Marvin e interpelemos o mundo sobre a nossa narrativa pessoal.

Por Nuno Gonçalves

Opinião expressa a título individual.

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